terça-feira, abril 14, 2009
domingo, dezembro 07, 2008
Biblioteca de Sabores
Uma pessoa muito próxima teve esta excelente ideia: organizar uma biblioteca consoante os sabores que nos transmitem. O bibliotecário perguntaria, qual será o sabor que lhe apetece hoje? Huumm, apetece-me algo doce. Então recomendo-lhe o Principezinho, claro. E para os dias que me apetece algo mais amargo? Temos Nietzsche ou talvez Dostoievski, mas se lhe apetece algo um pouco mais ácido como o limão talvez José Saramago. Se prefere algo mais salgado, talvez Fernando Pessoa. E Oscar Wilde? Ahhh, Oscar Wilder seria uma mistura mais confusa, algo mais amargo-doce.
terça-feira, março 25, 2008
Lisboa escrita (I)
Atravessei uma insónia há procura de um início de um livro. E por entre a noite pensei que o fim de uma história é normalmente um bom começo de uma outra:
“As ruas de Lisboa ecoavam o teu nome. Não digo isto como uma expressão metafórica ou como sinal de um caso patológico de esquizofrenia. Num acto de quixotesca loucura tinha-o espalhado pelos vários recantos da urbe inanimada, nas paredes, portões, postes e carros abandonados (tentei pintar um gato vadio mas este refugiou-se debaixo de um carro). Não conseguia escapar-me do teu nome entre as ruas da cidade, descobrindo-o mesmo em anagramas nos placares de publicidade ou em frases de ordem pintadas nos muros e tapumes. O que separa a paixão da obsessão, pois que toda a cidade escrita me parecia desembocar no teu nome? Fechei-mesegunda-feira, março 17, 2008
Ficção
Num baile de máscaras uma mulher aproxima-se do inevitável bar, sítio mais recondido da folia. Pede um copo de vinho e dirige-me a palavra: sabia que a palavra pessoa vem de persona que também significa máscara?
Desconhecia. É um pormenor interessante, digo com os olhos postos na minha bebida.
Não meu caro, não é um simples pormenor, diz-me com uma voz rouca. Imagina o mesmo que eu, neste ambiente? Confesso-lhe o seguinte, e dirige-se ao meu ouvido: estou quente…
Vêm-me à mente a imagem cinematográfica de pessoas a despirem e a tocarem-se em pulsões sem memória, deixando contudo o mistério das máscaras.
A mulher incógnita interrompe-me o devaneio: ténue fronteira entre ficção e realidade. Não, não é o sonho que comanda a vida é a ficção.
Um pingo de vinho cai-lhe nos seios, e ali fixei o meu olhar. Pergunta-me, ímpia, se gostaria de lamber. Contorço-me e procuro dar uma resposta evasiva: porque não?
Que raio de resposta: sim ou não?, pergunta-me firme.
Desamparado, rendendo-me à excitação, respondi sem rodeios, Sim.
Senti a liberdade de colocar-lhe a mão na perna, fui subindo por baixo do seu vestido rubro e verifiquei que não trazia roupa interior. Apenas coberta com um fino vestido de seda e a máscara. Sugeri encaminharmo-nos para um local mais privado. Animalesco, desapertei as calças e penetrei-a por trás, sentindo o seu húmido calor interior. Por curiosidade, num gesto impulsivo e impetuoso, arranquei-lhe a máscara e, horrorizado, não encontrei nem uma mulher bonita nem feia. Encontrei o nada.
sexta-feira, março 14, 2008
10 valores
Um professor meu, particularmente exigente, uma vez disse que não há nota mais bela que um 10, um número redondo. Esta opinião recebeu, obviamente, os protestos da turma. Então e o 20? Também é um número redondo. Ora, o 20 é a nota da perfeição e portanto pertence à esfera do inatingível. 20 é para Deus. O 19 é nota que aquele professor guardava para si e o 18 é para os génios. O 10, seguiu argumentando, é o único número redondo que se deverá almejar. É belo porque é o fiel da balança entre o saber e o não saber. Limite máximo da ignorância e limite mínimo do conhecimento, harmonia Zen da sabedoria. É o ponto ganho pela bola de ping-pong que embate na rede e por momentos gera a suspensão entre cair num ou noutro lado da mesa. Pensando nisto, que nota dou, portanto, à minha vida, experiência e conhecimento? 10 valores, isto sem querer passar por pessimista.
Uma frase que achei interessante: Se acham que já fizeram muita merda, pensem que andaram a adubar a vida!
quarta-feira, março 12, 2008
Sexo, Cabras e Rock’N’Roll
No hilariante filme de Woody Allen, “ABC do Amor”, Gene Wilder aparece a fumar um cigarro pós-coito com a sua amante, uma ovelha. Relembro outro filme onde um casal discute as orientações sexuais num mundo sem homens ou sem mulheres. Pergunta o homem: Se não existissem homens no mundo, farias sexo com outra mulher? Ao que a esposa responde: Porque não? E tu, se não existem mulheres, farias sexo com outro homem? Não… talvez arranjasse uma boa cabra.
Pensando bem até poderá ser uma boa escolha, embora não se possa esperar grande ajuda nas tarefas domésticas ou grandes conversas nos momentos após o coito.
Longe da ficção e na realidade bem concreta, um homem no Sudão foi obrigado a casar com uma cabra. A história é a seguinte: O homem foi apanhado a fazer sexo com uma cabra pelo dono desta. O dono da cabra em vez de o levar à justiça levou-o a um conselho de Ansiães que decretou que o famigerado (...ou não) adepto do sexo zoófilo pagasse pela cabra ao respectivo dono e casasse com ela. Será isto "the beginning of a beautiful frienship"? Como diria Fernando Pessa: E esta ein?
Aqui está a hiperligação para a notícia na BBC News:
http://news.bbc.co.uk/1/hi/world/africa/4748292.stm
sexta-feira, março 07, 2008
segunda-feira, março 03, 2008
Cinzento
Muito stressada com o trabalho?
Não sei muito bem. Esta noite calhou-me uma médica que não sabia fazer reanimação.
Ela não conseguiu reanimar um doente?
Ninguém iria conseguir...mas podia ter feito mais qualquer coisa... Sabias que aqui na nacional passam mais automóveis cinzentos que de qualquer outra cor?
Nunca foi coisa que reparasse.
7 cinzentos, um branco e um vermelho, no sentido do carregado neste momento... o céu está cinzento, porquê que as nuvens não caem se estão carregadas de água?
Elas caem... em forma de gotas.
E ainda bem, podia ser pior, podia ser em jactos... uma grande torneira, é assim que imagino o dilúvio.
terça-feira, fevereiro 26, 2008
Perth Girls
to see if I still feel”.
[Hurt, Nine Inch Nails]
O sol era retirado de um dos postais turísticos das praias de Perth na Austrália, onde destilava um luz difusa e inerte que se imiscuía com a imobilidade da areia e dos banhistas num momento fotográfico. Na praia podemos reconhecer três adolescentes que interagem em conversas e gestos cúmplices. As responsabilidades escolares estão a uma distância segura e não recai sobre elas nenhum ónus das responsabilidades familiares. São uma tabula rasa para as vicissitudes da vida onde o único perigo é o aborrecimento. Mas porquê focar a atenção nas três adolescentes e na sua aparente normalidade juvenil? Elas trocam impressões sobre músicas, lêem revistas, comentam a aparência dos jovens surfistas que se atravessam e metem conversa com elas. Não serão iguais como tantas outras? Mas assim como a areia da praia parece um conjunto monolítico, contudo se olharmos melhor para o pequeno segmento da areia na zona onde as adolescentes estenderam as toalhas podemos descobrir um pequeno tronco, uma beata ou um pedaço de vidro cortante que rasga a semelhança.
Deixo aquelas adolescentes, por uns momentos, na sua corte com os jovens surfistas. Penso na possibilidade inquietante para muitos de existirem actos gratuitos. Isto é, actos com a força de si mesmos, libertos de qualquer causa natural, biológica ou social. Podemos olhar para as três adolescentes, para as suas palavras, gestos e trejeitos e perguntar se haverá ali algo que seja gratuito. Isto, em princípio, não fará parte dos pensamentos daquelas adolescentes de aparência despreocupada, em pleno gozo dos seus anos folgados de formação e de individuação. Nem tão pouco é um problema da ciência mais preocupada com a procura de causas e efeitos. É antes um problema que pertence à espuma do pensamento filosófico e que poderá ter duas soluções principais, embora insatisfatórias: a primeira solução, é remeter um acto gratuito a uma causa fundamental, que em termos bíblicos poderá ter origem nos conceitos primordiais de bem ou de mal; a segunda solução será remeter o acto gratuito ao fenómeno difuso e fugidio do aleatório, tão incómodo tanto ao determinismo religioso como científico. Será um acto gratuito um acto de acção ou até de experimentação sobre o mundo? E se uma das adolescentes decidisse de repente insultar um dos surfistas sem provocação? Esbofeteá-lo ou dar-lhe um pontapé nos testículos? De onde poderá surgir essa vontade, que pode ser vista como irracional? Aqui entra alguma controvérsia, afinal um acto daqueles pode ter uma consideração de futuro, quais as consequências? E assim sendo, pode-se duvidar que seja um acto com a força de si mesmo. Devaneios à parte, os jovens surfistas afastam-se e evolam-se nas ondas. Uma adolescente distrai-se olhando para um revista sobre as estrelas do momento da música pop. As outras duas adolescentes cochicham entre si, sussurram palavras, fazem um voto e por fim guardam um segredo.
Regressam a casa de uma delas. No quarto de dormir, salta à vista um grande poster de uma estrela pop de tronco nu e musculado, esboçando um sorriso e um olhar que se supõe sensual. Estendem-se na cama e no chão, põe-se à vontade naquele porto familiar. Uma delas começa uma guerra de almofadas, mas que se torna cada vez mais violenta. Até que duas das adolescentes agarram na outra e começam a asfixiá-la com uma almofada. A certo momento, a jovem atacada percebe que tudo ultrapassou os limites da brincadeira e a asfixia que a assola não é apenas física mas a da incompreensão. Luta para se soltar perante o mesmo olhar pávido e sorridente da estrela pop no poster, até à última respiração...
O detective da policia, de pé perante a mesa da esquadra onde estão sentadas cabisbaixas e quietas as duas adolescentes, fuma um cigarro nervoso. Andando de um lado para o outro pergunta: Porquê?... Porquê? Porque é que fizeram isto?
Baixo e laconicamente diz uma delas: Queríamos saber se iríamos sentir remorsos...
(Baseado em factos verídicos)
segunda-feira, fevereiro 18, 2008
Escuro
sexta-feira, janeiro 25, 2008
Teoria do caos
domingo, novembro 18, 2007
Nascer duas vezes
sábado, novembro 03, 2007
O beto nacionalista
Pretos do C$%&#$, ucranianos da m#$%$, andam para aqui a roubar o trabalho aos portugueses. Por vossa causa não consegui um trabalho nas obras e não tive outro remédio se não ir para o Técnico tirar um curso superior…
sexta-feira, outubro 19, 2007
domingo, outubro 14, 2007
domingo, agosto 26, 2007
Fotografia
Biografia
A corrente da vida é uma construção constante da narrativa, a nossa vida é uma história com o seu quê de literário. Somos escritores de nós próprios e cada pessoa é um livro em potência, ou melhor dizendo, vários. Escolhemos a sucessão dos factos.
Podemos dizer, Churchill cumprimento Stalin mas podemos re-escrever: Churchill, depois de secretamente ter emolado a ferramenta na casa de banho e ter espirrado três vezes no conhaque de Einsenhower, cumprimentou Stalin...
Verdadeiramente, para nós próprios, não somos os nossos actos, somos o que nos impressionou, o que nos preencheu naquele momento, que nos tornou de certa forma verdadeiramente conscientes daquele aqui e agora. Qualquer estória pessoal é assim tão vaga e ambigua como a estória da nossa própria identidade... É um livro cujas páginas flutuam...
quarta-feira, agosto 01, 2007
Templo
sexta-feira, julho 13, 2007
Sitcom
Ben, Ben, grita Betty com a voz esganiçada. Que foi agora?, pergunta Ben chateado por interromper a leitura do jornal desportivo...
O Daddy tem pulso?! Como é que o Daddy tem pulso se está MORTO (risos). E não me tinhas dito que já está tudo tratado? Estás a imaginar coisas. Sério, ele tem pulso, vem cá ver. Ben toma o pulso a Daddy: Eh pá, raio do velho, não é que parece que tem mesmo pulso. Ben, não trates assim o Daddy. Bom, vou já chamar a Fanny.
Betty reentra no quarto de Daddy com a irmã Fanny (aplausos, vivas). oohhh Daddy, chora Fanny, não viveu o suficiente para me ver casar. Casar?! Tu?! Quem é que iria para a cama com um paquiderme como tu?, pergunta Ben, só se o Daddy pagasse a algum gajo um salário mensal chorudo, mas com a miséria de pensão que ele tinha... nem dava para as fraldas (risos). Bennnn, Betty dá-lhe uma palmada. Deixa estar Betty. Não preciso de homens como tu Ben, o meu dildo chega-me bem (risos). Fannyyy?!, exclama Betty. Bom Fanny, eu e o Ben sentimos o pulso ao Daddy. Não pode ser. Como pode ser Betty, se já está tudo tratado? Mas sentimos-lhe o pulso, Fanny. Vê por ti própria. Sentes alguma coisa? Nãaoooo... pera aí... Sim... estou a sentir alguma coisa. Vês, vês Ben, algo se passa. Teddy, filho, vem cá, depressa. Entra Teddy desconfortável (aplausos). Vem sentir o pulso ao vovó. Para quê? Ele parece morto que nem uma pedra. Além disso, já não está tudo tratado? É o teu avó, faz-lhe esse último favor, e lembra-te que ele gostava muito de ti. Claro, claro, tinha cá uma maneira de o mostrar, sempre a dar-me com a bengala na cabeça enquanto me chamava esgrouviado (risos). VÁ LÁ, dizem Ben e Betty em uníssono. Eu não vou tocar-lhe, nem pensar, diz Teddy repugnado, ainda posso apanhar uma doença ou alguma coisa do género. Ben: os mortos não apanham doenças idiota (risos).
Uuhhhhhh uhhhhhh oláaaaaaaa, a vizinha Trisha entra (aplausos). Não é um bocadinho inconveniente estarem todos aqui no quarto enquanto o Daddy dorme a sesta? O Daddy faleceu esta manhã, Trisha, buaaahhh. Ohhhh meu Deus, Betty... Então é por isso que ele está deitado de fato e gravata. Duuuhhh, diz Ben (risos).
Betty: Trisha, vê se consegues sentir o pulso do Daddy. Trisha: eu pensava que os mortos não tinham pulso. Vocês estão a tentar ver se ele está em forma para a vida depois da morte? Ben: Trisha, o que é tu foste na tua vida anterior? uma galinha? Sinceramente, acho que Deus ou o Buda ou lá o que é se esqueceu de trocar os cérebros à nascença. Bennnnnn, Betty volta a dar-lhe uma palmada. Trisha: Ohhhh, meu Deus, Betty, acho que tens razão... estou a sentir qualquer coisa... E o pior de tudo Trisha é que já está tudo tratado (risos).
Betty grita mais uma vez: Ruffy?! Ruffy anda cá, vem sentir o pulso ao Daddy. Ben: o Ruffy consegue lá sentir o pulso das pessoas. Ele é um cão, valha-me Deus (risos). Ohhh Ben, sabes bem que o Ruffy adora o Daddy. Se ele sentir alguma coisa ele vai ladrar, não é fofinho? (Ruffy lambe a boca da dona). Auf, Auf. Vês ele está a sentir alguma coisa. Algo se passa aqui, temos de telefonar já para um número de emergência.
A família inteira encosta-se ao telefone: Dói, Dói , Trim, Trim, Boa tarde. Responde Betty: Alô?! O meu paizinho faleceu e... Faleceu? Oiça, isto é uma linha de emergência... para os vivos... (risos). Betty: Mas ele está com pulso... E ainda por cima com tudo tratado (risos). Responde a operadora: O seu pai? Está morto? E tem pulso? Oiça, esta linha é demasiado preciosa para se perder tempo com brincadeiras (risos). Não desligue, isto não é brincadeira nenhuma. Operadora a perder a paciência: bom, olhe, mesmo que não seja uma brincadeira, eu nem devia estar a atendê-la, isto é uma linha de emergência PEDIÁTRICA (risos), é o que diz nas páginas amarelas. Talvez seja melhor telefonar para outro número de emergência. Grita Betty: mas isto é uma emergência bolas. Oiça, tenha calma. O que pode ter acontecido é que a senhora tenha sentido o seu próprio pulso, é o cenário mais plausível. Mas, toda a gente cá em casa viu com os próprios olhos que a terra há-de comer que o paizinho tem pulso, até o Ruffy sentiu-lhe o pulso, não foi querido? Auf, Auf. Mas o médico já não foi aí a casa verificar o óbito do seu pai? Sim, o médico já cá veio e passou a certificação de óbito. Cá entre nós, pareceu-me cheirar um bocadinho a álcool (risos). Ben acotovela a mulher: Diz-lhe que já está tudo tratado. Os homens da agência funerária também já cá vieram. Gente muito esquisita, sabe como é. Já está tudo TRATADO, minha senhora (risos). Operadora: mas se acha que o seu pai tem pulso, não seria melhor chamar outra vez o médico para confirmar? Ó minha senhora, como é que me diz para chamar o médico outra vez? Agora?! quando já está tudo tratado?! (risos, gargalhadas, aplausos, vivas, cheers, a moche, a loucura) (Créditos finais).
P.S.: Baseado em acontecimentos verídicos passados em Portugal.
sábado, julho 07, 2007
Impressões
sexta-feira, junho 22, 2007
Happy Birthday
Contas-me uma colecção de pequenas estórias, acontecimentos, observações que não se adicionam umas às outras para moldar uma estória completa. Poderão ter uma data precisa mas não se situam em nenhum lugar em particular nas nossas narrativas de vida. Poderiam ser baralhas e distribuídas de novo como as cartas de um baralho. É esta uma das características do mundo contemporâneo, dizes-me, uma situação bela e assustadora ao mesmo tempo. Estamos libertos das tradicionais e lineares trajectórias de vida, somos saltimbancos, incertos, indecisos, queremos experimentar, comprar, deitar fora. E isso reflecte-se nas estórias que partilhamos, nas frases soltas, nos textos que deixamos perdidos nas gavetas ou num blogue. Quero-te dizer aquilo que li o outro dia num blogue, era mesmo interessante... mas não me lembro. O nosso sentido de profundidade, de que a vida tem um rumo tangível e perceptível vai-se perdendo em modo fade out... Que fazer com os acontecimentos quotidianos, com aquilo que lê-mos e vê-mos, com aquilo que sentimos quando fodemos todo o sentido de História? Mais vale aproveitar os dias um a um, dizes-me. Toma um pastel de nata com uma vela no topo... Happy Birthday... um ano de Blogue... será ainda um infante? Que idade terá um blogue quando for velho?
quinta-feira, junho 07, 2007
Fé
domingo, junho 03, 2007
Matemática
“O Binómio de Newton é tão belo como a Vénus de Milo”
[Fernando Pessoa]
No novo mundo reina apenas uma linguagem universal: a matemática. Não se sabe ao certo o período em que todos passaram a comunicar somente em matemática, o período onde se deixaram de lado as palavras e onde a transmissão do pensamento passou a ser baseada numa linguagem e numa interpretação do mundo completamente codificada. Terá sido esta revolução obtida através de uma educação deliberada, através de uma revolução linguística deliberada ou até mesmo imposta? Ou terá sido uma revolução silenciosa, fruto do aumento das capacidades cognitivas da humanidade, um despertar da linguagem mais fundamental, o que aliás já tinha sido reconhecido por pensadores da era pré-histórica como Galileu ou Descartes? A religião do novo mundo também emana dessa ideia muito antiga de que a matemática é a linguagem de Deus a tradução mais perfeita da divindade, assim como da profecia Nietzcheniana da construção do “super-homem”. As antigas linguagens comuns são entendidas no novo mundo como uma tradução imperfeita do pensamento, são o espelho imperfeito de um modo de pensar pessoal e de certa forma intransmissível, herege portanto. As pessoas eram pequenos microcosmos de significado e visto que não falavam numa linguagem matemática as pessoas escapavam à descrição e explicação abstrata e axiomática do mundo, reféns das nuances de sentido. O que é certo é que as palavras são entendidas como impuras. Muito das desgraças do mundo antigo são atribuídas às antigas formas de comunicação, a política e o poder são consequências inevitáveis da linguagem comum, a imperfeição do homem era a imperfeição da linguagem.
No novo mundo só há espaço para a linguagem baseada em estruturas abstratas definidas axiomaticamente, usando a lógica formal como estrutura comum de comunicação. As estruturas abstractas, belas em si mesmas, fornecem assim uma generalização unificante do mundo. A verdadeira poesia é a verdade matemática. A outra forma estética pura do mundo é a música que tem a sua tradução matemática. Não há espaço para mal entendidos ou duplos sentidos entre os seres humanos, eliminaram-se as margens e as franjas da linguagem comum, falível, imperfeita, volátil. A utopia iluminista racional tomou forma e uma perdida babel linguística foi assim reencontrada. Os livros, os romances, a poesia feita de palavras são símbolos arcaicos, objectos arqueológicos...
sexta-feira, maio 18, 2007
O novo estripador de Lisboa
«Mas que merda é esta! O que é que o gajo quer dizer com isto, pá!»
«A perícia encontrou alguma coisa?»
«Nada, a mancha de sangue na nota de papel pertence à vítima! Três putas assassinadas e não há meio de apanhar o gajo! Nem uma pista! Que merda! Ahhh se eu conseguisse por as mãos nesse animal...»
«Não é um animal! É bem humano e isso é que é assustador! É um tipo inteligente que sabe o que faz, até tem uma escrita com um estilo apocalíptico interessante que ainda nos poderá dar pistas. Faz lembrar os escritos de Charles Manson.»
«Mas agora admiras o gajo? É um tipo maluco pá. Completamente desequilibrado, tu viste em que estado ele deixou as putas!»
«Sim, mas não podemos subestimar-lhe a inteligência, se o quisermos apanhar temos de entender a forma como este gajo pensa...”
«Entender o gajo... eu queria era enfiar-lhe um balázio naqueles cornos se pudesse. Entender o gajo... é o que dá aceitarem gajos formados em Psicologias e Sociologias na Judite. Ó camelo. Eu para aqui a insultar-te e não dizes nada».
«Estou a pensar... aliás tive uma ideia».
«Também eu, que tal irmos ali atacar uns caracóis e emborcar um fino a ver se refrescamos as ideias».
«Depois de irmos verificar uma coisa... Este gajo deixa mensagens com as putas, certo? Ele quer que as pessoas o leiam e onde é que, hoje em dia, é o sítio mais comum para deixar mensagens, ideias, textos?»
«Os classificados do Correio da Manhã?»
«oohh foda-se! Que mal fiz eu para te ter como parceiro. Não estúpido, se alguém quer deixar uma mensagem para um público anónimo usa a internet...
... vamos ver no que isto dá:»
“Demónios transvestidos de anjos assistem ao funeral da esperança e do amor” [Pesquisar Google]
«Et voilá - Letras que (Ab)sinto - aí está o blogue do gajo! Nem acredito, ele publicou exactamente a mesma mensagem no blogue! De facto, quem quer gritar para o mundo, grita por um blogue.»
«Ou deixa mensagens com putas desventradas»
«Olha, o gajo publicou o texto da mensagem exactamente no dia em que matou a terceira vítima!».
«Caralhos ma fodam».
«Com o meu à mistura é que não vai ser! Bom, o gajo apelida-se de «faceless», huummm, apropriado por enquanto. Seria muita sorte se ele fosse suficientemente estúpido para colocar um nome verdadeiro. Deixa ver o perfil: tem 28, sexo masculino e é de Lisboa. Ahhh e é aquário!»
«Que é que tem? Queres fazer a carta astrológica do gajo?»
«Não idiota, isto indica que nasceu entre 21 de Janeiro e 18 de Fevereiro.»
«Tás bem informado! Bom, em princípio toda esta informação já dá para limitar os casos possíveis para uns quanto milhares e começar a traçar um perfil. Mas será que toda essa informação é verdadeira?»
«Talvez pudéssemos deixar um comentário. Tentar começar a estabelecer contacto com ele...».
«Do que é que estás à espera, escreve o comentário».
«Calma..., temos que escrever qualquer coisa que o desperte, algo que crie empatia. Temos de conquistar a confiança deste gajo... Deixa-me ler o resto do blogue, ver como este gajo pensa, analisar-lhe a escrita... Porrra!! Ele colocou hoje uma nova entrada! Acho que ele vai matar outra vez esta noite...»
«Não se nós tentarmos impedir esse cabrão de merda! Vou avisar o chefe! Temos caçada!»
segunda-feira, maio 14, 2007
Superfície
terça-feira, maio 08, 2007
Oriente
Depois de algumas horas a vagabundear, perseguído pela humidade, o clima tropical e o fumo invisível da cidade, falta-me o ar, sento-me algures num canto da rua que está em modo fast-forward, pouso a mochila e desligo entre o nevoeiro de gente, bicicletas, veículos e comércio de rua. Sou sugado pelo fluxo espácio temporal de um buraco-de-minhoca para uma viagem de automóvel rumo a Barcelona. Relembro febril a silhueta onírica de um enorme touro preto, a pairar na paisagem enegrecida ao largo da estrada, por entre o desvio para o vermelho do sol moribundo de fim de tarde. Perante a geometria do touro apocalíptico pensei na forma como conceptualizamos o lusco-fusco como um fim, como um mundo que se apaga e não como um princípio, o princípio da noite. Noite e viagem adentro, algures perto de Zaragoza, encontro-me flanqueado de luzes vermelhas suspensas na escuridão. Desafiando o bom senso, desliguei o motor e todas as luzes e deixei o carro deslizar. Sem qualquer referente, o negro cerrado não me permitiu identificar a origem das pontos vermelhos, que assim ficaram sem nenhum outro significado senão o de serem eles próprios, arrancados de qualquer contexto, a pairar cristalinos por entre a escuridão monolítica. E nesta imagem inquietante desperto na noite da cidade.Algo desesperado percebo que perdi todo o sentido de lugar mas lentamente coloco-me de novo nas ruas de Bangkok. Mas estarei eu realmente em Bangkok? Bizarra colagem de paisagens mentais e de lugares como se percorresse uma pilha baralhada de postais turísticos sem qualquer indicação da sua origem. E estranhamente a minha inquietação tem um contínuo entre aquelas imagens distantes nos arredores de Zaragoza e as ruas de Bangkok. Procuro eu perder-me num ambiente estranho para procurar, entre os resquícios e fragmentos, uma identidade mais pura, como o processo de lapidação do diamante, reconhecendo assim a geometria mais perfeita da alma? É como se procurasse as gentes e os lugares mais desviantes para ter um maior sentido de mim mesmo. Mas naquela ambiência alienígena, exasperante, o meu desconforto será um sinal de que a minha alma já não tem resgate? A minha exasperação é subita e surpreendentemente acalmada perante o símbolo da coca-cola entre caracteres orientais. Naquela terra estranha e confusa, peço repetidamente para o primeiro comerciante tailandês que encontro, coca-cola, coca-cola, como se fosse a única água que me poderá salvar da sede.
sábado, abril 28, 2007
Abril
domingo, abril 22, 2007
Formol
Acendo um cigarro e recordo-me que pouco falta para a consulta de pneumologia no hospital. Levanto-me e revistas pornográficas caem espalhadas no chão. Despontam alguns corpos nús despudorados e escaqueirados, alguns demasiado perfeitos, irreais. E ficam ali as revistas prostradas no chão entre jornais e livros de fotografia, numa mistura insólita com imagens chocantes de guerra, doenças, miséria de James Natchey, Salgado... Penso que me sinto cada vez mais insensível ao toque. Um amigo meu, artista plático, disse-me um dia que homens e mulheres não precisam realmente uns dos outros, sempre podes masturbar-te pá!
Ao longe a televisão anunciava mais mortos no Iraque e vomitava as imagens da violência dos atentados... Um dos jornais espalhados no chão salta-me à vista com mais uma notícia de alguém que entrou em contramão na autoestrada provocando uma série de choques em cadeia. Como combater as imagens? O poder está morto, li algures, disperso na implosão das fronteiras entre o real e o ilusório... A realidade não é mais verificada, chamada a justificar-se a si própria. Não apreciamos a ‘realidade’ das doenças e da fome nos países do terceiro mundo. Através das notícias na televisão tomamos conhecimento de tal situação, mas não a encaixamos. Bombardeados que somos com imensos códigos, mensagens e imagens, a violência, a fome e a doença tornam-se apenas mais imagens desinfectadas no ecrã, que levam à aceitação acética e passiva. Os significados são dissolvidos em formol pois a informação dissolve o significado numa espécie de estado nubloso que leva à entropia...
Pego no carro e dirijo-me ao hospital. Entre os seus corredores, sinto lamentos distantes e vagos, uma vontade de gritar brota-me de dentro, shhhh, estamos num hospital, ouço uma censura interior. O ambiente branco-pálido e o cheiro ascético, as imagens, os quadros, os olhos virados para o écran da televisão, a propaganda religiosa, como que me querem dizer que os corpos realmente não existem... Vêm-me à memória a imagem, invocada por outro amigo, estudante de medicina, da cabeça de um nado-morto mergulhada num frasco de formol entre os corredores do hospital-escola.
As radiografias dos meus pulmões ao que parecem não estão famosas. Ouço distraidamente o médico a aconselhar-me, calmante e sem expressão, para reduzir o fumo ou pensar mesmo em deixar de fumar. Penso no quão silenciosamente o fumo invade o corpo e em como a medicina já não lida com os corpos físicos, mas com as imagens e os simulacros dos nossos corpos. O ambiente mediático repete e reproduz as imagens do corpo nos corredores e nas salas do hospital, tornando-se o verdadeiro paciente... A doença não pertence mais ao corpo biológico, habita antes as imagens nos monitores, nas radiografias, nas ecografias ou nos TACs...
terça-feira, abril 17, 2007
Máscara
Procuro-me, procuro-me, digo eu na minha conversa interior prostrado na tua cama enquanto te vestes. Hoje apetece-me ser Punk, comentas aos pinotes. Abres o guarda-roupa e entrevejo sem consegui retirar qualquer coerência, um kimono de gheisa, couro, roupas vintage, tintas para pintar o cabelo, colares e brincos, cintos da tropa, de rebites. Tento agarrar-te, puxar-te para a cama mas escapas fugidia...
Contas-me entusiasmada a tua terapia regressiva das vidas anteriores, deambulas pela história universal, foste persa, escrava grega, sacerdotisa pagã, bruxa perseguida pela inquisição, princesa em Versailles, prostituta na Londres vitoriana. Nas paredes contemplo as fotografias de ti própria em vários disfarces que relembram cenas iconográficas ou estereotipadas do cinema ou da vida, Betty Boop, uma minhota, Marylin Monroe, Alice, rapariga de colégio, uma lavadeira das margens do Tejo. Dizes-me que não são disfarces mas sim encarnações de várias personagens que assumes diante a objectiva, retratos de um ‘eu’ adaptável transfigurado no corpo, fruto de uma colagem de fragmentos. Incessante na tua transformação, sempre à procura de novas experiências, aborreceste com a rotina, focas-te no teu corpo, nas tuas máscaras sem que estas tenham qualquer significado particular. O significado, explicas-me, reside na própria forma como cobres o teu corpo, do jeito como te maquilhas e te enfeitas. Celebras o edifício instável da tua maneira de ser que constróis com restos, dogmas, frases feitas, traumas de infância, recortes de artigos de jornal que povoam os recantos do teu quarto, observações casuais, filmes antigos, pequenas vitórias, pequenos gestos, pessoas detestadas, pessoas amadas. Para ti, a tua narrativa de vida é uma colagem, uma montagem do acidental, do achado e do improvisado, de pequenos objectos que encontras e recolhes, que amontoas no teu santuário. Procuro-me, procuro-me, e a teu lado parece-me uma tarefa tão fútil... Beijo os teus lábios e não sei de quem sejam...
quinta-feira, abril 12, 2007
Televisão Pidesca
quinta-feira, abril 05, 2007
Silêncio
No café desenhava os teus lábios a fumar fugazmente um cigarro. Em nenhum dia em particular disseste-me que a ti os quatros elementos nada significavam, só o fumo te era importante e mais verdadeiro. A par do fumo, o teu silêncio pairava suspenso entre o sussurrar do mundo em volta, conversas soltas, loiça a tilintar, o folhear dos jornais que perpassam os dedos domingueiros, o murmurar da cidade distante. Perguntei-te, em que pensas? Nada
sexta-feira, março 30, 2007
A propósito de racismo
Em 2000 fui monitor numa associação cultural pela qual acompanhei uma visita ao Alentejo de uma pandilha de miúdos construída maioritariamente por "pretos" do concelho da Amadora de bairros francamente desprivilegiados. O que é curioso é que naquela visita as diferenças não se jogaram tanto entre monitores ("brancos") e monitorizados ("pretos"). Os monitores pertenciam a outra estratosfera, a diferença ali jogava-se entre os próprios miúdos. Logo aí se percebe que a diferença é construída. Um miúdo da Guiné não tem nada a ver com um puto de Angola – em termos de fisionomia, tom de pele, religião, etc. E é, por exemplo, sintomático como, em alguns círculos, os cabo-verdianos são “acusados” de não serem "pretos" de verdade. Na visita, um miúdo intitulava outro de “Cara de balão” ao que o cara de balão retorquia “Cara de macaco!”. Perante isto, o meu choque teve dois tempos. No primeiro tempo, foi a aparente intolerância entre os miúdos. Claro que é bastante comum os miúdos implicaram uns com os outros, porque uns são calados, são caixas de óculos, são isto e aquilo. Mas ali parecia estar em jogo a própria fisionomia e cor da pele. Pergunto se o tom de pele e a fisionomia de cada um seria ali apenas mais um pretexto para implicar com os outros. No entanto, pareceu-me que, afinal, a intolerância existe em esferas insuspeitas, as diferenças demarcam-se e são construídas nos sítios em que menos eu esperava: “mas então os pretos são racistas entre eles?”. O choque mais duradouro foi o do segundo tempo - o do meu próprio preconceito desvendado. Não, não foi justificar um preconceito porque outros também o praticam entre si, algo que muita gente faz com afirmações do estilo “mas se até eles são racistas!...”. Não foi nada assim de tão básico. O meu preconceito desvendado foi pensar nos “outros”, “nos pretos” ou seja lá em que “grupo social” ou etnia for, como gente igual, monolítica, como se juntos formassem uma pedra. Antes daquele episódio, se me tivessem dito que pensava assim desmentiria de pronto. Mas o facto é que pensava, sub-repticiamente, e foi por isso que aquela construção e negociação da diferença entre aqueles miúdos me chocou assim tanto.
quarta-feira, março 14, 2007
O dia das Mulheres
O dia das mulheres começou. Um dia plural, de festividade, para todas as várias formas que as mulheres podem assumir. Umas têm os peitos mais desenvolvidos e outras nem tanto, umas têm mais pêlos e outras menos, umas têm pêlos na cara, no peito, mais ou menos penugem nas pernas. Há mulheres com uma racha na parte púbica, ladeada por lábios e encimada por pequeno botão de lótus, outras tem uma protuberância muito maior que visivelmente pende e cresce quando se excitam sexualmente. Estas mulheres não conseguem ter filhos e são vistas por muitas das outras mulheres como as mais incompletas, mas defendem-se comparando as suas grandes protuberâncias com os pequenos botões de lótus das outras mulheres. Porém, neste dia, o dia das mulheres, esquecem as diferenças e lançam-se para a rua, numa espécie de procissão carnavalesca. Beijam-se na boca indiscriminadamente, trocam a sua saliva, uma saliva universal, nascida da junção de todas as salivas, a celebração da Mulheridade universal. Não há padrões na forma como as mulheres se cobrem e se apresentam, com mais ou menos roupa, saias, vestidos, maquiagem, calças, camisas, independentemente da sua apresentação física, com ou sem peitos grandes, com ou sem pêlos na cara, nas pernas, no peito... Os gostos variam, há mulheres que gostam de outras mulheres diferentes, ou então gostam de mulheres mais próximas da sua própria imagem, e há quem tenha como amante, companheira, amiga todo o tipo de mulheres. Seja como for, hoje fazem o voto de esquecer os gostos e as preferências e celebram a sua irmandade. No quotidiano, muitas mulheres lutam entre si, disputam o lugar de favoritas entre as escolhidas, as Mulheres Hermafroditas, as mulheres que nascem com os sinais dos vários tipos de mulheres, são casos raros mas sinal de realeza, são as escolhidas, as líderes, as mulheres completas... Mas hoje é dia de tréguas... enquanto as Hermafroditas observam, na preeminência dos seus pedestais, a procissão passar...
sábado, março 03, 2007
Oi, cara!
terça-feira, fevereiro 27, 2007
A insustentável leveza de viver
sábado, fevereiro 24, 2007
quinta-feira, fevereiro 22, 2007
Reino do Butão
domingo, fevereiro 18, 2007
Panapticon
quinta-feira, fevereiro 08, 2007
terça-feira, janeiro 30, 2007
segunda-feira, janeiro 22, 2007
segunda-feira, janeiro 08, 2007
terça-feira, dezembro 26, 2006
Gospel
Acomodámo-nos no meio da sala e aguardámos expectantes pelo espectáculo. Algo inesperadamente começamos a ouvir os brados ao céu de um padre evangélico. Nem críamos acreditar na situação em que nos tínhamos metido!, no meio de uma missa evangélica, nós que tínhamos o péssimo hábito de não adorar e idolatrar ninguém sem nos ser devidamente apresentado.
O sermão aquecia e o padre interpelava «Do you belieeeevee in tha Lord?», YEAHHH respondia a assistência. «Say Ámen!» e as ovelhas lá retorquiam ao estímulo extasiadas na fé. «Cuuuurveee yourself and behold the power of tha Lord!» e nós espetados no meio daquele anfiteatro, aparvoados, ante aquela gente encurvada em transe a esbracejar Ámen no ar. Era impossível não dar nas vistas!
Felizmente que a missa tinha que acabar e veio o Gospel cantado pelos fieis. Descobri que o gospel pode ser qualquer estilo, soul, r’n’b, reggae, rap, hip-hop, e assim por aí adiante, desde que seja um veículo de transmissão do evangelho do Senhor. O começo era quase invariavelmente o mesmo, a descrição da situação pessoal lastimosa de cada um antes de encontrar a luz do Senhor! «My life was a mess! My life was a mess! I have to confess», debitava um rapper, mas nada que a iluminação do JC não cure! Perante estes testemunhos a minha mente colocou-se à deriva. Mas o que é afinal a iluminação, a fé? Não seria o Céu, ou antes, a sua idealização algo mais pessoal do que aquilo que qualquer religião está pronta a admitir? Alguém que cante aí o Personal Jesus dos Depeche Mode. Ninguém? Imagino-me eu na eterna e celestial parvalheira do céu cristão? Livre dos pecados do corpo, livre de hormonas ou será que é no céu que os homens aprendem a ter orgasmos múltiplos? Um eterno… ininterrupto… orgasmo celestial…
Nisto sinto uma cotovelada do italiano. Planeamos por gesticulação e trejeitos um plano de fuga, um aceno concertado e abalamos em manobras de diversão. Em vão! Com a saída à nossa frente fomos demovidos por duas mãos enormes que se agarraram firmemente aos nossos ombros. Um bigode com um indivíduo atarrachado entrepôs-se à visão da porta. «Don’t go away!». Ó amigo, eu quero é pisgar-me daqui. Mas insistia ele: «You have the chance right here, right now to find Jesus and the light!» Sim sim, mas a luz às vezes não faz mais que ofuscar. «Today can be the day that will change your lives for ever!» Virei-me para o bígode e interpelei: «Então e se eu for o maior filantropo do mundo mas não encontrar a luz e não acreditar no JC ou no Senhor-Todo-Poderoso, irei na mesma para o Inferno?». Logo um dedo indicador gesticulou fervorosamente à minha frente e uma voz estremecida e apregoadora sentenciou, qual eco Metraton dos confins dos céus: «That´s right!». Descolamos das mãos que nos seguravam os ombros e demos vários passos por cima da nossa respiração até à porta, sempre na expectativa que as mesmas mãos obstinadas nos demovessem de novo.
Saímos para fora e sugámos, sôfregos, o gélido ar nocturno. Órfãos, atirados para a noite, longe de um ventre acolhedor, olhámos, um para o outro, como dois gémeos que se reencontram. No vazio da ausência de fé apercebemo-nos que não tínhamos uma nesga de hipótese de salvação. Aliviados abraçamo-nos, rimos, demos dois passos de dança e vagabundeamos pela escuridão com a leveza das crianças perdidas.
domingo, dezembro 17, 2006
Meta-língua
Fantasiavas sacudir um dicionário deixando cair as palavras como se fossem flocos de neve em forma de peças de puzzle que se amontoavam no chão. Do montinho construías associações absurdas entre palavras das quais brotavam sentidos insuspeitos, que nomeavam e construíam campos de significado e de inteligibilidade humana à espera de serem descobertos. Uma palavra que classifica, desclassifica tudo o resto, dizias autoritária. Falavas da incúria de não haver uma palavra para as não palavras. Disseste-me que a invenção da palavra Deus para abarcar o descritível e o indescritível era uma inevitabilidade. Reclamavas do fascismo da língua que limita a expressão do mundo inteligível, dos sentidos e dos sentimentos, que deixa escapar tudo o que está para lá das franjas da comunicação e da expressão linguística.
Mostraste a tua revolta, primeiro, aglutinando palavras, expelindo-as justapostas e rerranjadas como se o português fosse uma língua germânica. No meio da rua observavas “Olhovislumbra aquele homúnculo patudonarilongo que patarasteja entre a ruamultidão como se remassemar contrarremetido as vagaondascorrente”. As tuas palavras sacudiam-me, efervesciam-me na base da nuca. Tinha de ponderar o seu significado como se ainda tivesse que aprender a manejar a língua. Quando te olhava fixamente dizias-me “os teus espelhoalma invernam-me”. Intrigava-me a fluidez com que cuspias tais arranjos feitos do barro linguístico comum do qual moldavas expressões inusitadas. Posteriormente, começaste a criar palavras completamente novas com as letras do alfabeto. No final já nem os símbolos do alfabeto te satisfaziam e criaste novos símbolos... Inventaste a tua própria língua, mais próxima do que sentias, com suas próprias regras gramaticais (ou anti-regras, não sei bem) de morfologia, ortografia, fonética e fonologia. A tua meta-língua tornou-se incomunicável para todos.
Inscreves nas paredes do hospital psiquiátrico as tuas frases. Passas-me para a mão páginas e páginas de uma escrita indecifrável. Será um diário, uma viagem interior, um romance, um anti-livro, uma anti-estória...? Perdeste-te no contacto com a humanidade, o que me queres dizer está nas margens do significado…mas então porque é que cada gesto, som e palavra que expulsas me parece tocar, mover e transmitir um nível profundo de sentido?
segunda-feira, dezembro 11, 2006
Picasso
Estava um distraído turista americano a deambular por um qualquer aeroporto europeu quando esbarrou contra um transeunte. Aquela face que se lhe entrepôs, encrespada de rugas como pinceladas anavalhadas pela seta do tempo, sugeria alguém familiar. Mas foram aqueles olhos pungentes como se esculpissem a realidade à sua volta que fez o americano perceber, perplexo, que tinha à sua frente Pablo Picasso. Sentindo-se afortunado pela colisão não deixou passar a oportunidade de solicitar a Picasso, com o ar chistoso de quem pede a um artista de rua para mostrar os seus dotes, que desenhasse o seu talento num pedaço de papel. Condescendente, o mestre estalou os dedos e em poucos segundos tingiu no papel providenciado a sua mentira. Sôfrego, aquela fera esfaimada com cara de turista atirou-se ao desenho de Picasso, mas este, tirando o rascunho do seu alcance com um gesto, exigiu nada menos que 10.000 dólares.
O americano bem protestou: está louco! Tanto dinheiro por rabiscos que demoraram segundos a fazer.
Meu amigo, retorquiu Picasso, este mero desenho durou cerca de sessenta anos a fazer. Momentos depois surripiava jovial o cheque das mãos meio convencidas do turista americano.
terça-feira, dezembro 05, 2006
É natural!
A estória começa comigo a ler um artigo de uma revista científica no cenário mais inusitado: numa terreola, berço do meu pai, esquecida e ostracizada no meio da Beira Interior. Na derradeira frase da leitura apareceu no meu campo de visão a figura mais improvável com quem eu pudesse tagarelar sobre o artigo: o Ti’ Marcelino, um dos meus tio-avôs octogenários, acompanhado da sua mula. Para o Ti’ Marcelino tudo é espantosamente natural! Sempre que o confrontava com observações para mim assombrosas – “ó tio! já pensou que tudo o que existe surgiu de uma caganita microscópica com uma densidade e um peso infinitos que explodiu e deu origem ao universo onde estamos?” -, o Ti’ Marcelino retorquia pávido e sereno com uma couve na mão: “É natural”. É como se tudo lhe fosse evidente e todas as verdades universais pudessem ser contempladas através da horta e do curral. Se o todo pode ser vislumbrado nas partes então uma hortaliça decerto que engloba os segredos do cosmos!
Voltei várias vezes à carga - “E sabia que o nível microscópico das partículas que compõem os átomos não se rege pelas mesmas noções de espaço e de tempo que nos são tão naturais e intuitivas no dia à dia?” - e sempre a mesma réplica pouco entusiasmada: “É natural!”. Dessa vez, quis confrontá-lo com a tese perturbadora do artigo que tinha acabado de ler. “Ó tio, está aqui um cientista britânico a dizer que há toda a probabilidade de sermos entidades conscientes dentro de uma simulação de computador! (perscruto-lhe as expressões à procura de indícios de compreensão! Nada!) O argumento segue todas as regras da lógica e baseia-se na teoria das probabilidades (nisto, a mula mija!) Segundo o cientista, uma civilização com um nível tecnológico avançado será capaz de conceber simulações, em supercomputadores, de entidades conscientes que farão parte de grandes simulacros (continuo apesar da invasão fétida da urina campestre nas minhas narinas!). Sendo provável existirem, nesse plano de realidade, mais simulações que pessoas então teremos uma grande probabilidade de sermos um simulacro de computador. Tudo isto será ainda mais provável quando nós próprios, raça humana, formos capazes de criar essas simulações. Nessas condições temos de encarar seriamente a possibilidade de a realidade ser uma boneca russa simulacra e Deus poderá não passar de um informático balofo num qualquer canto obscuro doutro plano de existência.” Primeira reacção, silêncio, a seguir uma coçadela na cabeça por baixo da boina e depois, não é que, raisparta o homem, recebo como resposta o inevitável: “é natural”. Para rematar, com o Ti'Marcelino puxando a mula, veio o convite: “Ó rapaz não queres ali ajudar-me a apanhar umas couves? (em vez de estares aí a pasmar inútil com uma revista científica na mão, acrescentei eu mentalmente)”. Ahhhh se tudo fosse tão simples como a vida campestre… e é por isso que é cientificamente razoável concluir que… “o ar do campo é tão puro!”
sexta-feira, novembro 17, 2006
Cerimónias de solteiros
As pessoas que ficam solteiras também deviam ter cerimónias
É injusto serem só os casados a terem direito a celebrar uma possível vida de união
Assim fulana tal ou fulano tal declaravam solenemente que não querem casar
Ou participar em qualquer instituição pequeno-burguesa como o matrimónio
«Declaro o amor eterno por mim próprio, até que a morte me separe»
E, posto isto, o padre selaria verbalmente o contracto sagrado com a nossa própria pessoa: «Pode beijar-se a si próprio»
Claro que há limites para os sítios em nos podemos beijar a nós próprios
Ombros, braços, mãos, quiçá os próprios pés
E quem conseguir que lamba o nariz
segunda-feira, novembro 06, 2006
sábado, outubro 28, 2006
O muçulmano pós-moderno
terça-feira, outubro 24, 2006
Marie Antoinette
Causa estranheza que a mesma Sofia Coppola que realizou “As Virgens Suicidas” e “Lost in Translation” tenha escolhido fazer um filme aparentemente histórico. Mas Marie Antoinette não é um filme histórico é antes uma fantasia, uma idealização de adolescente sobre como seria viver em Versailles e ser rainha de França. Se “As Virgens Suicidades” é um filme sobre a adolescência reprimida, Marie Antoinette é sobre o borbulhar dos sonhos de adolescência, sobre o jogo de sentidos, desejos e fantasias concretizados na que poderia ser apelidada a maior casa de bonecas do Mundo: Versailles. Quando Luís XVII, coroado rei, disse «somos demasiado novos para governar» estava a querer protestar, «deixem-nos brincar mais um pouco!». O decurso da História e as questões políticas são ruído de fundo, coisas que distraem a corte (e a nós) do sonho. A frase «se não têm pão, que comam brioche», que se colou à pele de Marie Antoinette e que bem poderia servir de seu epitáfio, só poderia ser dita por quem se ofuscou pelo brilho extasiante de Versailles, da sua opulência e ostentação. Também nós somos extasiados. Não se vê a miséria do povo como se supõe que a Rainha não tenha visto. A Revolução Francesa surge como algo incompreensível como o mendigo sujo e agressivo que surge de rompante e vem contaminar o bolo, calar a banda e estragar a festa. Marie Antoinette simboliza aqueles que se fecham na redoma de vidro da não preocupação e serve de parábola sobre a doce corrupção da inconsciência feita de sentidos, de sonhos e caprichos satisfeitos.
domingo, outubro 22, 2006
Dali
Conta a lenda que Dali, na sua juventude, masturbou-se mecanicamente e jorrou a sua semente para uma pequena sacola. Fechou-a como quem fecha o seu berço, a sua meninice, a sua puberdade, a sua dependência. Dirigiu-se fulgurantemente em direcção ao seu pai e disse emproado: “Toma! Não te devo mais nada!”
quinta-feira, outubro 19, 2006
oxelfer
…chuva de vidro estilhaçado…
…fantasio e semeio holocaustos…
…dos quais desperto Fénix renascida entre as cinzas…
…mas fora dos delírios aprendi que renascer é um parto muito mais difícil…
… jogamos o jogo dos espelhos com quem nos rodeia…
…procuramos nos outros reflexos da nossa própria imagem…
…retribuem-nos o estereótipo refractado do que fomos, do que somos e do que iremos ser…
…chega-nos a imagem da imagem como a sala de espelhos das feiras itinerantes…
…por vezes apenas reconhecemos sombras distorcidas de nós mesmos…
…os outros são o nosso labirinto espelhado do qual dificilmente escapamos…
…pois tragicamente não conseguimos deixar de procurar o nosso próprio reflexo…
segunda-feira, outubro 16, 2006
Desventuras de uma Palavra no Reino da Língua Portuguesa
Xeveco vive, normalmente, fechado na sua solidão, entre as páginas números muitos e tal dos “xis”; à espera de uma luz no fundo do túnel. Por vezes, há um breve esboço de luminosidade, quando lá calha alguém abrir o dicionário na página lote n.º tal que serve de lar a Xeveco e lá lhe passa fortuitamente o olhar. Xeveco enche, então, o peito de esperança, e na ânsia tola que reparem em si, aperalta-se todo para receber a inesperada visita, mas depressa o olhar se desvanece, passando rapidamente para outra palavra.
Mas há dias, raros é certo, em que o olhar, intrigado pela estranheza de Xeveco, fica-se a admirar, como quem admira um qualquer carantonha numa feira de horrores, e por piedade, diante dos olhos esbugalhadamente suplicantes de Xeveco, em jeito de mísero trocado de empatia, lá lhe lê o significado. E assim, Xeveco, vai procurando um sentido à sua ínfima existência, sempre aos tropeços nas pedras que se atravessam no íngreme caminho dessa coisa a que nós nos habituámos a chamar vida. Isto de ser palavra não é só estar no dicionário a fazer figura e número, elas também têm o seu orgulho, o prazer de servirem para alguma coisa. É como diz o filósofo “Esquecem-me, logo não existo!”
Com uma costela grega da parte da mãe e uma costela latina da parte do pai, Xeveco teve uma infância infeliz, nunca tendo conseguido cativar a atenção dos seus pais, sendo progressivamente esquecido no emaranhado de palavras, suas irmãs. Perdido entre o oceano pantanoso da maioria, no desejo de ser especial, Xeveco fez de tudo para chamar a atenção; vestiu-se de excentricidades multicolores, salpicou-se de brincos e tatuagens, assaltou supermercados, ameaçou atirar-se da ponte, como querendo dizer para o dicionário-mundo “Ei, estou aqui! Existo!?”, e aí o mundo condescendeu “Coitado!”, e veio com falinha mansas “Olha que disparate ias fazer! Aconchega-te às palavras tuas irmãs. Há sempre lugar para mais um” (nem que seja debaixo da ponte). Xeveco bateu com o pé e ameaçou suicidar-se outra vez, mas o dicionário-mundo não lhe ligou desta vez, “Olha!, suicida-te à vontade que ninguém vai reparar em ti!”, insinuou-lhe. Afinal de contas, trata-se apenas de menos uma palavra errante entre as estatísticas.
Xeveco sofreu por tudo quanto foi lado, até no amor se desventurou. Enfim, é um pouco difícil falar de desventuras e não falar de amor, não é? Primeiro, apaixonou-se pela palavra Bela, mas ela nem lhe ligava, nem sequer devia saber que Xeveco existia, e ele, nem sequer teve coragem de lhe confessar o seu amor. Se ao menos tivesse o paleio galanteador da palavra Poesia, ou então o talento da palavra Música. Depois apaixonou-se pela palavra Formosa, melhor amiga de Vaidosa e alvo das atenções de grande parte das palavras masculinas. Xeveco entregou-lhe, em esperança ingénua, o seu amor, mas este foi-lhe devolvido por um seco, mas cruelmente acutilante “NÃO!”. A Formosa, essa, só se envolve com gente famosa da televisão como aquela palavra masculina, o Modelo ou então por aquele playboy internacional árabe chamado Petróleo.
Na escola Xeveco foi logo gracejado, parece que ensinam os putos desde pequenos a discriminar aqueles que nos são mais estranhos. A professora perguntou-lhe o que é que ele queria ser, e Xeveco disse que queria ser pintor, e pintar de azul todas as paredes e casa da Terra, reflectir a serenidade do céu no mundo. Mas sonhos desses não servem à sociedade. É preciso, antes, sonhar em construir pontes e estradas, pois a civilização ergue-se associada à palavra Moderna. Diziam-lhe que estudasse muito, para talvez um dia vir a ser uma palavra letrada com direito a entrar no restrito circulo do vocabulário erudito – que tem a valiosa tarefa de dizer de forma espampanante e complicada as coisas que poderiam ser ditas de forma mais simples. Mas cedo Xeveco se desinteressou pelos estudos, enveredando pelas más companhias, começou a dar-se com as palavras Álcool, Esgrouviado e demais, penetrando num submundo alternativo onde o presente se fingia aprazível. Para aliviar a dor matreira que se esconde nos confins da sua alma, ou talvez – quem sabe? – para preencher o seu vazio existencial, Xeveco refugiou-se no caminho da droga. Começou pela experimentação inocente das drogas leves na companhia Marijuana, mas não se contentou e conheceu o Ópio à procura de maiores satisfações alucinatórias, acabando num beco sem saída partilhado com o Cavalo e a Heroína.
A vida para Xeveco é como aqueles elevadores para o Inferno, só desce! E foi na descida ao inferno com as drogas duras, por intermédio da palavra Seringa, que Xeveco se tornou amigo do Síndrome de Imunodeficiência Adquirida, vulgarmente conhecido por SIDA. Dividiram as mágoas, o recanto imundo da baixa lisboeta, um jornal de semana passada com que se protegiam do sopro da palavra Frio, e uns pedaços do Pão esmolado de um dia. Passaram a ser como unha e carne, como palhaço e piada, como nazi e judeu, os indesejados dos indesejados da sociedade das palavras, dignas personagens de uma melodia de Blues.
Mas foi sol de pouca dura. A palavra Amizade depressa deixou de ser um elo entre as duas personagens. Num ápice SIDA pôs-se nas bocas do mundo, tornou-se famosa, com clubes de fãs, linhas telefónicas e tudo. Figura de primeiro plano no Jet-Set internacional sempre acompanhada de gente famosa como aquele cantor, o Freddy Não-Sei-Quantas, ou aquele matulão basquetebolista, o “Magic” Johnson. Uma verdadeira estrela dos jornais, com cabeçalhos cada vez maiores e honras de primeira página: “SIDA prolífera em Portugal”, “30 milhões de portugueses infectados pelo vírus da SIDA”. Depressa galgou para a televisão, primeiro com reportagens no telejornal, depois com exaustivos documentários e até entrevistas na CNN, chegando por fim, ao mundo cinematográfico de Hollywood, contracenando com actores de primeira água como é o Tom Hanks (aquele da costela portuguesa). Um verdadeiro triunfo de marketing, com posters, pins e porta-chaves à venda por todo o lado. Tornou-se moda e todos passaram a querer sida.
- Ó mãe, eu quero SIDA.
Xeveco ficou assim sozinho na sua desgraça, completamente inútil à sociedade, não servindo sequer aos mais afincados jogadores de «SCRABBLE». Olha!, pôs-se a arrumar carros, sempre vai tendo um dinheirito para comer um qualquer remendo de refeição e alimentar o impiedoso vício, combatendo assim a ressaca de um mundo adverso.
E assim, Xeveco tornou-se um entre os Xevecos da vida, os restos da sociedade, desses que andam para aí fazendo-se parecer úteis, a arrumar carros em frente a uma qualquer superfície comercial de pretensiosas mãos estendidas, com cabeleiras de quem não conhece um pente, barbas à Antero de Quental, bigodaças de fazer inveja ao Estaline e indumentárias de trabalho que se diriam de um refugiado da Bósnia.
Dedico então este conto à palavra, deveras estranha, que é Xeveco. Usei-a ostensivamente, sem saber sequer o que significa! Num daqueles dias de sorte para a palavra Xeveco, deparei com ela ao acaso no dicionário, estava eu à procura de uma qualquer palavra banal. «Xeveco!? Que raio de palavra!», pensei, e logo me atacou a curiosice mesquinha do seu significado: prontifiquei-me alambazadamente a lê-lo, mas, hesitei. Lê-lo-ia e depois? Seria aquilo e mais nada, acabaria em desilusão. Fazê-lo seria dissecá-lo numas poucas palavras sintéticas, reduzi-lo à pobreza e ociosidade de uma fórmula exacta. Conti então a minha brutidão bisbilhoteira, e não me atrevi a dar-lhe sequer a mais pequena espreitadela.E assim Xeveco, desprovido de significado algum, talvez me queira transmitir a verdade que me falta, uma qualquer verdade suprema, que um dia, um misterioso mandala sussurrou, ou aquilo que eu entender. Podem chamar-me louco, mas foi decidido unanimemente pelos cônsules da minha consciência que Xeveco passasse a ser a minha palavra, a palavra que exprimirá a minha melancolia quando indescritível, a minha dor e tristeza quando inqualificável, ou a alegria transcendental que sinto quando te tenho ao pé de mim, fenómeno verdadeiramente inexplicável.
segunda-feira, outubro 09, 2006
Kafka
sexta-feira, setembro 29, 2006
Cachimbo e reflexão
sexta-feira, setembro 15, 2006
Sala de Espera
Ser doente fora da sala de espera pode ser sinal de fraqueza, um estigma que talvez deva ser escondido, mas naquele contexto a doença é exposta a plenos pulmões, sendo o desencadeador de relações sociais. É motivo para ser o centro das atenções e confere mesmo um certo prestígio. Coleccionar doenças é como subir uns pontos no “ranking” dos freqüentadores assíduos do centro de saúde. Para essas pessoas estar doente é um estado perpétuo, dentro e fora do centro clínico, e, portanto, é mais do que justificada a sua presença na consulta, mesmo que na prática a verdadeira maleita do momento seja algo mais espiritual, a solidão. (E é a partir desse estado interiorizado de doença perpétua que se pode perceber porque é que certas pessoas idosas continuam a medicar-se passado o período de medicação estipulado pelo clínico).
Ouvi uma vez um médico de família contar uma situação que lhe aconteceu que me marcou pelo seu significado social e humano. Do leque de senhoras idosas que compareciam todas as semanas à consulta com uma diligência inamovível, uma delas deixou de comparecer. Passadas duas semanas o médico começou a indagar: “Arranjou companheiro? terá ido para casa de familiares? para um lar? Ou pior, terá morrido?”. Porém, na terceira semana lá estava a senhora na sala de espera como se nada tivesse acontecido. Durante a consulta o médico, curioso, perguntou-lhe: “Mas afinal o que é que lhe aconteceu?”. Perante a interpelação, a senhora respondeu (imagino eu que verbalizando a resposta de uma forma lacónica como se estivesse a dizer a coisa mais lógica do mundo): “Sabe xô doutor, tive doente!”.
sexta-feira, julho 07, 2006
Eterno estranho
…se a vida fosse um eterno e fresco começar de novo…
…um remoinho constante, um fogo arejado de sentimentos iniciais, libertos da corrupção das coisas sedimentadas…
…gostaria de ser um eterno estranho, que perdeu algures o passado, para quem o momento inicial e cristalino em que toquei na tua alma pairasse suspenso por entre o tempo……desejava que fossemos sempre um para o outro, dois estranhos que ao se conhecerem se desconhecem infinitamente...
quarta-feira, junho 28, 2006
…não fumava por sistema, o vício nunca tinha conseguido reclamar o corpo…
…os cigarros que fumava eram prazeres emprestados entre a promiscuidade de sensações da noite…
…não fumava apenas pelo prazer de sentir o trago do tabaco…
…fumar era como que uma exercitação da minha força de vontade…
…resistia aos caprichos do vício…
…e ria-me da dependência dos outros…
…rejubilava entre a bruma dos castelos de fumo o meu corpo, a minha vontade liberta…
…um dia, comprei o mesmo maço de tabaco que ela…
…comecei a fumar um por dia ao fim da tarde, plagiando submisso o seu ritual…
…na esperança de que cada cigarro que se esvaiasse em fumo no crepúsculo,
fosse o sangue da minha ferida aberta em lenta ebulição…
…prometi a mim mesmo que quando fumasse o último, a esqueceria…