sexta-feira, setembro 29, 2006

Cachimbo e reflexão

Agasalhado pela brisa matinal o doutor Eduardo meditava entre esfumadas do cachimbo. Desde há muito que fazia a associação de ideias entre cachimbo e reflexão. Havia estabelecido uma ligação, um esquema neuronal que tornava essa associação incontornável. Se sentia necessidade de reflectir tinha de fumar, se fumava a reflexão jorrava-lhe no espírito e assim viajava errante em pensamentos e ideias. E explicar aos seus pacientes que fumava? Como explicar a contradição entre o que a profissão médica aconselha e a sua própria prática de fumador? De nada valia explicar que a doutrina médica enquanto domínio do saber abstracto era uma coisa, que as práticas de um comum médico de família eram outras. Que a sua decisão de fumar fazia parte de uma escolha privada de uma pessoa concreta que por acaso veste de vez em quando o papel social de médico. Que decidira conscientemente fazer uma troca entre o prazer do tabaco e quem sabe uns possíveis ganhos abstractos na esperança de vida. Quantos anos de vida valerão um prazer, uma sensação, uma satisfação imediata dos sentidos? E haveria uma oposição entre os sentidos da vida e um possível sentido da vida? Seja como for “o” sentido da vida parecia-lhe algo de absurdo: cada pessoa é um mundo incomensurável. Quem lhe tirava a pintura agora tirava-lhe tudo. Aliás, em várias consultas de rotina esquecia a medicina e falava de pintura aos seus pacientes. Assustou-lhe essa conexão tão forte. Seria assim tão refém de uma actividade que se tornaria impossível qualquer reconstrução do sentido da sua vida. Deixar de pintar seria morrer? Podia ser pior, pensou, o seu sentido da vida poderia ser uma pessoa, alguém.

sexta-feira, setembro 15, 2006

Sala de Espera

Os usos sociais das instituições são muitas vezes diferentes dos usos intencionados pelos seus criadores. As pessoas atribuem-lhes os seus fins próprios e os seus usos específicos. Isto não é necessariamente perverso e daí emana muita da riqueza da vida social. Um exemplo dessa situação é o uso que várias pessoas idosas dão à sala de espera dos centros de saúde, que se tornam num meio de inclusão social para escapar à solidão. A sala de espera passa a ser uma autêntica sala de estar. Deixa de ser um espaço intermédio para passar a ser um espaço de convívio por direito próprio, onde se opera uma espécie de medicalização da solidão pela iniciativa dos próprios “doentes”.
Ser doente fora da sala de espera pode ser sinal de fraqueza, um estigma que talvez deva ser escondido, mas naquele contexto a doença é exposta a plenos pulmões, sendo o desencadeador de relações sociais. É motivo para ser o centro das atenções e confere mesmo um certo prestígio. Coleccionar doenças é como subir uns pontos no “ranking” dos freqüentadores assíduos do centro de saúde. Para essas pessoas estar doente é um estado perpétuo, dentro e fora do centro clínico, e, portanto, é mais do que justificada a sua presença na consulta, mesmo que na prática a verdadeira maleita do momento seja algo mais espiritual, a solidão. (E é a partir desse estado interiorizado de doença perpétua que se pode perceber porque é que certas pessoas idosas continuam a medicar-se passado o período de medicação estipulado pelo clínico).
Ouvi uma vez um médico de família contar uma situação que lhe aconteceu que me marcou pelo seu significado social e humano. Do leque de senhoras idosas que compareciam todas as semanas à consulta com uma diligência inamovível, uma delas deixou de comparecer. Passadas duas semanas o médico começou a indagar: “Arranjou companheiro? terá ido para casa de familiares? para um lar? Ou pior, terá morrido?”. Porém, na terceira semana lá estava a senhora na sala de espera como se nada tivesse acontecido. Durante a consulta o médico, curioso, perguntou-lhe: “Mas afinal o que é que lhe aconteceu?”. Perante a interpelação, a senhora respondeu (imagino eu que verbalizando a resposta de uma forma lacónica como se estivesse a dizer a coisa mais lógica do mundo): “Sabe xô doutor, tive doente!”.