sábado, outubro 28, 2006

O muçulmano pós-moderno

Fazendo uma pausa do livro que indolentemente lia em Victoria Station, admirei um jovem, trajado a preceito de muçulmano com um jornal na mão, que por um breve instante pareceu-me balbuciar alguma coisa em português com os pais. Não dei caso ao que atribui como sendo um erro de percepção. Seriam as saudades de Portugal a turvar-me a audição? E submergi de novo no livro, enquanto esperava que as horas me trouxessem o autocarro que esperava. Passado algum tempo, levantei de novo o sobrolho e chamou-me imediatamente a atenção um pormenor que escapara, como se tivesse visto uma visão e o meu mundo fosse revestido de um novo significado – o jornal que o muçulmano albergava era … “A Bola”?! Mudei de assento e acerquei-me discretamente. Pus-me à coca. Não era imaginação. O muçulmano falava um português de Portugal, talvez um pouco condimentado de caril. Já no autocarro posicionei-me estrategicamente e com a confiança do pré-11 de Setembro sentei-me ao seu lado e meti conversa. Era Janeiro de 2001 e estava de regresso para o meu ano de Erasmus.O jovem muçulmano, esse, estudava teologia e preparava-se para um dia ser Imã. Confessara-me que lia “A Bola” porque era doentiamente Benfiquista. (Rezará ele a Alá para que Nuno Gomes marque um golo?) Falámos da fé muçulmana, da vida em Inglaterra, da situação comum de estarmos longe de casa… a mesma casa…?! Ao longo da conversa, as minhas categorizações, feitas de vidro, começaram a rachar e a pouco e pouco começaram a cair pedaços… Contou-me este pormenor: por alturas do Euro 2000, os alunos muçulmanos da universidade organizaram um campeonato de futebol, com equipas constituídas consoante o seu país de origem. Ele representara Portugal!!! Delicioso jogo de identidade que uma ferida entre eixos ou supostas civilizações não deixa antever! Aquele muçulmano faz muito mais parte dos tempos que correm do que eu, português de gema, provavelmente ainda preso a algumas velhas categorias…

terça-feira, outubro 24, 2006

Marie Antoinette

«S'ils n'ont pas de pain, qu'ils mangent de la brioche!»


Causa estranheza que a mesma Sofia Coppola que realizou “As Virgens Suicidas” e “Lost in Translation” tenha escolhido fazer um filme aparentemente histórico. Mas Marie Antoinette não é um filme histórico é antes uma fantasia, uma idealização de adolescente sobre como seria viver em Versailles e ser rainha de França. Se “As Virgens Suicidades” é um filme sobre a adolescência reprimida, Marie Antoinette é sobre o borbulhar dos sonhos de adolescência, sobre o jogo de sentidos, desejos e fantasias concretizados na que poderia ser apelidada a maior casa de bonecas do Mundo: Versailles. Quando Luís XVII, coroado rei, disse «somos demasiado novos para governar» estava a querer protestar, «deixem-nos brincar mais um pouco!». O decurso da História e as questões políticas são ruído de fundo, coisas que distraem a corte (e a nós) do sonho. A frase «se não têm pão, que comam brioche», que se colou à pele de Marie Antoinette e que bem poderia servir de seu epitáfio, só poderia ser dita por quem se ofuscou pelo brilho extasiante de Versailles, da sua opulência e ostentação. Também nós somos extasiados. Não se vê a miséria do povo como se supõe que a Rainha não tenha visto. A Revolução Francesa surge como algo incompreensível como o mendigo sujo e agressivo que surge de rompante e vem contaminar o bolo, calar a banda e estragar a festa. Marie Antoinette simboliza aqueles que se fecham na redoma de vidro da não preocupação e serve de parábola sobre a doce corrupção da inconsciência feita de sentidos, de sonhos e caprichos satisfeitos.

domingo, outubro 22, 2006

Dali

Conta a lenda que Dali, na sua juventude, masturbou-se mecanicamente e jorrou a sua semente para uma pequena sacola. Fechou-a como quem fecha o seu berço, a sua meninice, a sua puberdade, a sua dependência. Dirigiu-se fulgurantemente em direcção ao seu pai e disse emproado: “Toma! Não te devo mais nada!”

quinta-feira, outubro 19, 2006

oxelfer

…no semi-sono assaltam-me delírios de catástrofes…
…chuva de vidro estilhaçado…
…fantasio e semeio holocaustos…
…dos quais desperto Fénix renascida entre as cinzas…
…mas fora dos delírios aprendi que renascer é um parto muito mais difícil…
… jogamos o jogo dos espelhos com quem nos rodeia…
…procuramos nos outros reflexos da nossa própria imagem…
…retribuem-nos o estereótipo refractado do que fomos, do que somos e do que iremos ser…
…chega-nos a imagem da imagem como a sala de espelhos das feiras itinerantes…
…por vezes apenas reconhecemos sombras distorcidas de nós mesmos…
…os outros são o nosso labirinto espelhado do qual dificilmente escapamos…
…pois tragicamente não conseguimos deixar de procurar o nosso próprio reflexo…

segunda-feira, outubro 16, 2006

Desventuras de uma Palavra no Reino da Língua Portuguesa

Xeveco parece ser daquelas palavras que servem, apenas, para aumentar as estatísticas: “Compre JÁ o novo dicionário, em dois volumes, com – Imagine só – mais de quinhentas mil palavras!”, espalhafata no ecrã, irritantemente pela cagagéssima vez, uma polida dentuça TV-Shop com artificialidade sorridente de polyester entre luzes e pó-de-arroz. “Mais de quinhentas mil palavras!” – penso, é o mesmo que dizer quinhentas mil palavras e uns restos paranormais de pseudo-palavras e, sem dúvida, que Xeveco pertence a essas estranháveis sobras, anómalos ajuntamentos de letras chutados na traseira – os “impróprios para consumo” da sociedade do Reino da Língua Portuguesa. Aliás, quem, no seu perfeito juízo, iria procurar uma palavra destas no dicionário?
Xeveco vive, normalmente, fechado na sua solidão, entre as páginas números muitos e tal dos “xis”; à espera de uma luz no fundo do túnel. Por vezes, há um breve esboço de luminosidade, quando lá calha alguém abrir o dicionário na página lote n.º tal que serve de lar a Xeveco e lá lhe passa fortuitamente o olhar. Xeveco enche, então, o peito de esperança, e na ânsia tola que reparem em si, aperalta-se todo para receber a inesperada visita, mas depressa o olhar se desvanece, passando rapidamente para outra palavra.
Mas há dias, raros é certo, em que o olhar, intrigado pela estranheza de Xeveco, fica-se a admirar, como quem admira um qualquer carantonha numa feira de horrores, e por piedade, diante dos olhos esbugalhadamente suplicantes de Xeveco, em jeito de mísero trocado de empatia, lá lhe lê o significado. E assim, Xeveco, vai procurando um sentido à sua ínfima existência, sempre aos tropeços nas pedras que se atravessam no íngreme caminho dessa coisa a que nós nos habituámos a chamar vida. Isto de ser palavra não é só estar no dicionário a fazer figura e número, elas também têm o seu orgulho, o prazer de servirem para alguma coisa. É como diz o filósofo “Esquecem-me, logo não existo!”
Com uma costela grega da parte da mãe e uma costela latina da parte do pai, Xeveco teve uma infância infeliz, nunca tendo conseguido cativar a atenção dos seus pais, sendo progressivamente esquecido no emaranhado de palavras, suas irmãs. Perdido entre o oceano pantanoso da maioria, no desejo de ser especial, Xeveco fez de tudo para chamar a atenção; vestiu-se de excentricidades multicolores, salpicou-se de brincos e tatuagens, assaltou supermercados, ameaçou atirar-se da ponte, como querendo dizer para o dicionário-mundo “Ei, estou aqui! Existo!?”, e aí o mundo condescendeu “Coitado!”, e veio com falinha mansas “Olha que disparate ias fazer! Aconchega-te às palavras tuas irmãs. Há sempre lugar para mais um” (nem que seja debaixo da ponte). Xeveco bateu com o pé e ameaçou suicidar-se outra vez, mas o dicionário-mundo não lhe ligou desta vez, “Olha!, suicida-te à vontade que ninguém vai reparar em ti!”, insinuou-lhe. Afinal de contas, trata-se apenas de menos uma palavra errante entre as estatísticas.
Xeveco sofreu por tudo quanto foi lado, até no amor se desventurou. Enfim, é um pouco difícil falar de desventuras e não falar de amor, não é? Primeiro, apaixonou-se pela palavra Bela, mas ela nem lhe ligava, nem sequer devia saber que Xeveco existia, e ele, nem sequer teve coragem de lhe confessar o seu amor. Se ao menos tivesse o paleio galanteador da palavra Poesia, ou então o talento da palavra Música. Depois apaixonou-se pela palavra Formosa, melhor amiga de Vaidosa e alvo das atenções de grande parte das palavras masculinas. Xeveco entregou-lhe, em esperança ingénua, o seu amor, mas este foi-lhe devolvido por um seco, mas cruelmente acutilante “NÃO!”. A Formosa, essa, só se envolve com gente famosa da televisão como aquela palavra masculina, o Modelo ou então por aquele playboy internacional árabe chamado Petróleo.
Na escola Xeveco foi logo gracejado, parece que ensinam os putos desde pequenos a discriminar aqueles que nos são mais estranhos. A professora perguntou-lhe o que é que ele queria ser, e Xeveco disse que queria ser pintor, e pintar de azul todas as paredes e casa da Terra, reflectir a serenidade do céu no mundo. Mas sonhos desses não servem à sociedade. É preciso, antes, sonhar em construir pontes e estradas, pois a civilização ergue-se associada à palavra Moderna. Diziam-lhe que estudasse muito, para talvez um dia vir a ser uma palavra letrada com direito a entrar no restrito circulo do vocabulário erudito – que tem a valiosa tarefa de dizer de forma espampanante e complicada as coisas que poderiam ser ditas de forma mais simples. Mas cedo Xeveco se desinteressou pelos estudos, enveredando pelas más companhias, começou a dar-se com as palavras Álcool, Esgrouviado e demais, penetrando num submundo alternativo onde o presente se fingia aprazível. Para aliviar a dor matreira que se esconde nos confins da sua alma, ou talvez – quem sabe? – para preencher o seu vazio existencial, Xeveco refugiou-se no caminho da droga. Começou pela experimentação inocente das drogas leves na companhia Marijuana, mas não se contentou e conheceu o Ópio à procura de maiores satisfações alucinatórias, acabando num beco sem saída partilhado com o Cavalo e a Heroína.
A vida para Xeveco é como aqueles elevadores para o Inferno, só desce! E foi na descida ao inferno com as drogas duras, por intermédio da palavra Seringa, que Xeveco se tornou amigo do Síndrome de Imunodeficiência Adquirida, vulgarmente conhecido por SIDA. Dividiram as mágoas, o recanto imundo da baixa lisboeta, um jornal de semana passada com que se protegiam do sopro da palavra Frio, e uns pedaços do Pão esmolado de um dia. Passaram a ser como unha e carne, como palhaço e piada, como nazi e judeu, os indesejados dos indesejados da sociedade das palavras, dignas personagens de uma melodia de Blues.
Mas foi sol de pouca dura. A palavra Amizade depressa deixou de ser um elo entre as duas personagens. Num ápice SIDA pôs-se nas bocas do mundo, tornou-se famosa, com clubes de fãs, linhas telefónicas e tudo. Figura de primeiro plano no Jet-Set internacional sempre acompanhada de gente famosa como aquele cantor, o Freddy Não-Sei-Quantas, ou aquele matulão basquetebolista, o “Magic” Johnson. Uma verdadeira estrela dos jornais, com cabeçalhos cada vez maiores e honras de primeira página: “SIDA prolífera em Portugal”, “30 milhões de portugueses infectados pelo vírus da SIDA”. Depressa galgou para a televisão, primeiro com reportagens no telejornal, depois com exaustivos documentários e até entrevistas na CNN, chegando por fim, ao mundo cinematográfico de Hollywood, contracenando com actores de primeira água como é o Tom Hanks (aquele da costela portuguesa). Um verdadeiro triunfo de marketing, com posters, pins e porta-chaves à venda por todo o lado. Tornou-se moda e todos passaram a querer sida.
- Ó mãe, eu quero SIDA.
Xeveco ficou assim sozinho na sua desgraça, completamente inútil à sociedade, não servindo sequer aos mais afincados jogadores de «SCRABBLE». Olha!, pôs-se a arrumar carros, sempre vai tendo um dinheirito para comer um qualquer remendo de refeição e alimentar o impiedoso vício, combatendo assim a ressaca de um mundo adverso.
E assim, Xeveco tornou-se um entre os Xevecos da vida, os restos da sociedade, desses que andam para aí fazendo-se parecer úteis, a arrumar carros em frente a uma qualquer superfície comercial de pretensiosas mãos estendidas, com cabeleiras de quem não conhece um pente, barbas à Antero de Quental, bigodaças de fazer inveja ao Estaline e indumentárias de trabalho que se diriam de um refugiado da Bósnia.
Dedico então este conto à palavra, deveras estranha, que é Xeveco. Usei-a ostensivamente, sem saber sequer o que significa! Num daqueles dias de sorte para a palavra Xeveco, deparei com ela ao acaso no dicionário, estava eu à procura de uma qualquer palavra banal. «Xeveco!? Que raio de palavra!», pensei, e logo me atacou a curiosice mesquinha do seu significado: prontifiquei-me alambazadamente a lê-lo, mas, hesitei. Lê-lo-ia e depois? Seria aquilo e mais nada, acabaria em desilusão. Fazê-lo seria dissecá-lo numas poucas palavras sintéticas, reduzi-lo à pobreza e ociosidade de uma fórmula exacta. Conti então a minha brutidão bisbilhoteira, e não me atrevi a dar-lhe sequer a mais pequena espreitadela.E assim Xeveco, desprovido de significado algum, talvez me queira transmitir a verdade que me falta, uma qualquer verdade suprema, que um dia, um misterioso mandala sussurrou, ou aquilo que eu entender. Podem chamar-me louco, mas foi decidido unanimemente pelos cônsules da minha consciência que Xeveco passasse a ser a minha palavra, a palavra que exprimirá a minha melancolia quando indescritível, a minha dor e tristeza quando inqualificável, ou a alegria transcendental que sinto quando te tenho ao pé de mim, fenómeno verdadeiramente inexplicável.

segunda-feira, outubro 09, 2006

Kafka

Não é a burocracia, ou a sua ineficiência, que é, por si só, kafkaniana. O que Kafka nos ensinou é que a implementação de um sistema burocrático é uma lógica que vai permeando os indivíduos debaixo da sua pele. Se a burocracia é um principio organizador quando desviado do seu propósito humano e tornado fim em si mesmo cai no absurdo. Muitas vezes somos injustos para com os sistemas burocráticos pois só lhes despimos o absurdo quando não funcionam. A falha do veio racionalizante e disciplinador da burocracia é no fundo o espelho das nossas próprias incongruências enquanto seres humanos. Entreabre-se o absurdo e a irracionalidade da nossa própria humanidade encobertos pelos nossos próprios sistemas abstractos. Imagino o espectro do senhor Kafka a divagar observante pelas várias repartições da administração pública, pelos correios, pelas administrações… observando com um esgar todas as situações absurdas. Senti claramente a sua presença uns anos atrás, quando fui buscar uma carta registada aos correios. O funcionário dos correios na sua diligência rotineira dirigiu-me a palavra: “O seu bilhete de identidade, por favor!”. O pedido surpreendeu-me, coisa que não deveria acontecer. Parece que foi uma tolice minha. Afinal, para levantar qualquer carta registada é necessária a identificação, toda a gente sabe disso. Porém, era precisamente o meu novo bilhete de identidade que estava dentro daquela carta, enviado pelo registo civil em substituição por um perdido. Tentei explicar a situação caricata mas em vão: “O que quer que eu faça? O que é certo é que necessito do seu documento de identificação para que lhe possa entregar esta carta!”. “Desculpe lá, mas tudo isto é kafkaniano!” – respondi. Nisto sinto o empregado congelar os seus gestos e parar uma fracção de segundo, concerteza o tempo para pensar: “Só me faltava agora um pseudo-intelectualoide para me chatear a mona!”. Depois da sua breve suspensão no tempo continuou inflexível “Pois, pois… é kafkaniano… (“que é que este chouriço quer dizer com isto?”) mas isto há regras para os serviços funcionarem. Se não tem identificação e se ela está na cartinha, o problema não é meu! Porque não vai ao registo civil?”. “O velho jogo do empura…”, fugiu-me o desabafo. Exigi falar com o gerente. Nisto, com um ar displicente o funcionário levantou-se e simplesmente bufou. Foi chama-lo, tínhamos subido um andar no castelo de Kafka.Satisfeita a minha exigência, o gerente indagou “Mas afinal o que se passa aqui?”. Dada a explicação, parou para cogitar. “Como poderia a (i)lógica burocrática resolver este dilema?”, indaguei eu olhando para a expressão franzida do gerente. Finalmente este decidiu-se a abrir cuidadosamente a carta no seu bordo com uma espátula. Retirou solenemente a minha identidade, examinou-a e lançou-me o sobrolho perscrutador. Poderia ter-me passado a identificação directamente para as mãos. Mas não o fez, seria absolutamente contra as regras. Antes, recolocou zelosamente a minha identificação dentro do envelope e passou-o para as minhas mãos. Não é demais frisar a relevância deste gesto, com ele salvara o castelo de Kafka.