sexta-feira, maio 18, 2007

O novo estripador de Lisboa

“Demónios transvestidos de anjos assistem ao funeral da esperança e do amor. Putas pagas à hora usam trajes fúnebres com cheiro a mofo e a esperma que os perfumes baratos mal disfarçam e trazem nas mãos flores de plástico compradas na loja do chinês...”

«Mas que merda é esta! O que é que o gajo quer dizer com isto, pá!»
«A perícia encontrou alguma coisa?»
«Nada, a mancha de sangue na nota de papel pertence à vítima! Três putas assassinadas e não há meio de apanhar o gajo! Nem uma pista! Que merda! Ahhh se eu conseguisse por as mãos nesse animal...»
«Não é um animal! É bem humano e isso é que é assustador! É um tipo inteligente que sabe o que faz, até tem uma escrita com um estilo apocalíptico interessante que ainda nos poderá dar pistas. Faz lembrar os escritos de Charles Manson.»
«Mas agora admiras o gajo? É um tipo maluco pá. Completamente desequilibrado, tu viste em que estado ele deixou as putas!»
«Sim, mas não podemos subestimar-lhe a inteligência, se o quisermos apanhar temos de entender a forma como este gajo pensa...”
«Entender o gajo... eu queria era enfiar-lhe um balázio naqueles cornos se pudesse. Entender o gajo... é o que dá aceitarem gajos formados em Psicologias e Sociologias na Judite. Ó camelo. Eu para aqui a insultar-te e não dizes nada».
«Estou a pensar... aliás tive uma ideia».
«Também eu, que tal irmos ali atacar uns caracóis e emborcar um fino a ver se refrescamos as ideias».
«Depois de irmos verificar uma coisa... Este gajo deixa mensagens com as putas, certo? Ele quer que as pessoas o leiam e onde é que, hoje em dia, é o sítio mais comum para deixar mensagens, ideias, textos?»
«Os classificados do Correio da Manhã?»
«oohh foda-se! Que mal fiz eu para te ter como parceiro. Não estúpido, se alguém quer deixar uma mensagem para um público anónimo usa a internet...
... vamos ver no que isto dá:»

“Demónios transvestidos de anjos assistem ao funeral da esperança e do amor” [Pesquisar Google]

«Et voilá - Letras que (Ab)sinto - aí está o blogue do gajo! Nem acredito, ele publicou exactamente a mesma mensagem no blogue! De facto, quem quer gritar para o mundo, grita por um blogue.»
«Ou deixa mensagens com putas desventradas»
«Olha, o gajo publicou o texto da mensagem exactamente no dia em que matou a terceira vítima!».
«Caralhos ma fodam».
«Com o meu à mistura é que não vai ser! Bom, o gajo apelida-se de «faceless», huummm, apropriado por enquanto. Seria muita sorte se ele fosse suficientemente estúpido para colocar um nome verdadeiro. Deixa ver o perfil: tem 28, sexo masculino e é de Lisboa. Ahhh e é aquário!»
«Que é que tem? Queres fazer a carta astrológica do gajo?»
«Não idiota, isto indica que nasceu entre 21 de Janeiro e 18 de Fevereiro.»
«Tás bem informado! Bom, em princípio toda esta informação já dá para limitar os casos possíveis para uns quanto milhares e começar a traçar um perfil. Mas será que toda essa informação é verdadeira?»
«Talvez pudéssemos deixar um comentário. Tentar começar a estabelecer contacto com ele...».
«Do que é que estás à espera, escreve o comentário».
«Calma..., temos que escrever qualquer coisa que o desperte, algo que crie empatia. Temos de conquistar a confiança deste gajo... Deixa-me ler o resto do blogue, ver como este gajo pensa, analisar-lhe a escrita... Porrra!! Ele colocou hoje uma nova entrada! Acho que ele vai matar outra vez esta noite...»
«Não se nós tentarmos impedir esse cabrão de merda! Vou avisar o chefe! Temos caçada!»

segunda-feira, maio 14, 2007

Superfície

Tenho este sonho recorrente. Sonho que raspo na superfície de um lago gelado, ou será uma parede de tijolos pintada de branco? Raspo, raspo, cravo as unhas na superfície esguia e monolítica, esmurro a parede de gelo, procurando mergulhar no lago límpido e respirar debaixo de água. Ambiciono chegar ao fundo, fundir-me ao leito telúrico de todos os seres. Acordo completamente suado, mas será agua salina dos poros ou água doce? Acordas com o meu sobressalto na cama e perguntas-me se está tudo bem. Não foi nada, só um sonho, e adormecemos novamente enroscados um no outro...

terça-feira, maio 08, 2007

Oriente

O meu fascínio pelo oriente, é um fascínio antigo que surge da fantasia de aterrar em terras o mais estranhas e diferentes da realidade que conheço. É talvez o mesmo fascínio que sentia em pequeno pela União Soviética, como se fosse um outro lado do espelho, como se pudesse saltar o muro e me sentisse, de repente, deslocado, fora do familiar, com o frio no estômago de quem desliza como Alice na toca recôndita do coelho branco. Com a mochila às costas aterro em Bangkok e sou imediatamente invadido por um ambiente sobrecarregado de mensagens, códigos, símbolos orientais, cheiros e sons indecifráveis. Encontro-me como alguém que veio do passado ou do futuro, não importa. Fantasio que sou uma mente incontaminada, deslocada no espaço e no tempo, para quem os edifícios, as pessoas, os artigos do comércio de rua, os enormes cartazes de publicidade nada significam. Sinto-me perdido e mudo, apenas com a capacidade de gritar sons sem sentido.
Depois de algumas horas a vagabundear, perseguído pela humidade, o clima tropical e o fumo invisível da cidade, falta-me o ar, sento-me algures num canto da rua que está em modo fast-forward, pouso a mochila e desligo entre o nevoeiro de gente, bicicletas, veículos e comércio de rua. Sou sugado pelo fluxo espácio temporal de um buraco-de-minhoca para uma viagem de automóvel rumo a Barcelona. Relembro febril a silhueta onírica de um enorme touro preto, a pairar na paisagem enegrecida ao largo da estrada, por entre o desvio para o vermelho do sol moribundo de fim de tarde. Perante a geometria do touro apocalíptico pensei na forma como conceptualizamos o lusco-fusco como um fim, como um mundo que se apaga e não como um princípio, o princípio da noite. Noite e viagem adentro, algures perto de Zaragoza, encontro-me flanqueado de luzes vermelhas suspensas na escuridão. Desafiando o bom senso, desliguei o motor e todas as luzes e deixei o carro deslizar. Sem qualquer referente, o negro cerrado não me permitiu identificar a origem das pontos vermelhos, que assim ficaram sem nenhum outro significado senão o de serem eles próprios, arrancados de qualquer contexto, a pairar cristalinos por entre a escuridão monolítica. E nesta imagem inquietante desperto na noite da cidade.Algo desesperado percebo que perdi todo o sentido de lugar mas lentamente coloco-me de novo nas ruas de Bangkok. Mas estarei eu realmente em Bangkok? Bizarra colagem de paisagens mentais e de lugares como se percorresse uma pilha baralhada de postais turísticos sem qualquer indicação da sua origem. E estranhamente a minha inquietação tem um contínuo entre aquelas imagens distantes nos arredores de Zaragoza e as ruas de Bangkok. Procuro eu perder-me num ambiente estranho para procurar, entre os resquícios e fragmentos, uma identidade mais pura, como o processo de lapidação do diamante, reconhecendo assim a geometria mais perfeita da alma? É como se procurasse as gentes e os lugares mais desviantes para ter um maior sentido de mim mesmo. Mas naquela ambiência alienígena, exasperante, o meu desconforto será um sinal de que a minha alma já não tem resgate? A minha exasperação é subita e surpreendentemente acalmada perante o símbolo da coca-cola entre caracteres orientais. Naquela terra estranha e confusa, peço repetidamente para o primeiro comerciante tailandês que encontro, coca-cola, coca-cola, como se fosse a única água que me poderá salvar da sede.