terça-feira, fevereiro 26, 2008

Perth Girls

“I hurt myself today
to see if I still feel”.
[Hurt, Nine Inch Nails]

O sol era retirado de um dos postais turísticos das praias de Perth na Austrália, onde destilava um luz difusa e inerte que se imiscuía com a imobilidade da areia e dos banhistas num momento fotográfico. Na praia podemos reconhecer três adolescentes que interagem em conversas e gestos cúmplices. As responsabilidades escolares estão a uma distância segura e não recai sobre elas nenhum ónus das responsabilidades familiares. São uma tabula rasa para as vicissitudes da vida onde o único perigo é o aborrecimento. Mas porquê focar a atenção nas três adolescentes e na sua aparente normalidade juvenil? Elas trocam impressões sobre músicas, lêem revistas, comentam a aparência dos jovens surfistas que se atravessam e metem conversa com elas. Não serão iguais como tantas outras? Mas assim como a areia da praia parece um conjunto monolítico, contudo se olharmos melhor para o pequeno segmento da areia na zona onde as adolescentes estenderam as toalhas podemos descobrir um pequeno tronco, uma beata ou um pedaço de vidro cortante que rasga a semelhança.
Deixo aquelas adolescentes, por uns momentos, na sua corte com os jovens surfistas. Penso na possibilidade inquietante para muitos de existirem actos gratuitos. Isto é, actos com a força de si mesmos, libertos de qualquer causa natural, biológica ou social. Podemos olhar para as três adolescentes, para as suas palavras, gestos e trejeitos e perguntar se haverá ali algo que seja gratuito. Isto, em princípio, não fará parte dos pensamentos daquelas adolescentes de aparência despreocupada, em pleno gozo dos seus anos folgados de formação e de individuação. Nem tão pouco é um problema da ciência mais preocupada com a procura de causas e efeitos. É antes um problema que pertence à espuma do pensamento filosófico e que poderá ter duas soluções principais, embora insatisfatórias: a primeira solução, é remeter um acto gratuito a uma causa fundamental, que em termos bíblicos poderá ter origem nos conceitos primordiais de bem ou de mal; a segunda solução será remeter o acto gratuito ao fenómeno difuso e fugidio do aleatório, tão incómodo tanto ao determinismo religioso como científico. Será um acto gratuito um acto de acção ou até de experimentação sobre o mundo? E se uma das adolescentes decidisse de repente insultar um dos surfistas sem provocação? Esbofeteá-lo ou dar-lhe um pontapé nos testículos? De onde poderá surgir essa vontade, que pode ser vista como irracional? Aqui entra alguma controvérsia, afinal um acto daqueles pode ter uma consideração de futuro, quais as consequências? E assim sendo, pode-se duvidar que seja um acto com a força de si mesmo. Devaneios à parte, os jovens surfistas afastam-se e evolam-se nas ondas. Uma adolescente distrai-se olhando para um revista sobre as estrelas do momento da música pop. As outras duas adolescentes cochicham entre si, sussurram palavras, fazem um voto e por fim guardam um segredo.

Regressam a casa de uma delas. No quarto de dormir, salta à vista um grande poster de uma estrela pop de tronco nu e musculado, esboçando um sorriso e um olhar que se supõe sensual. Estendem-se na cama e no chão, põe-se à vontade naquele porto familiar. Uma delas começa uma guerra de almofadas, mas que se torna cada vez mais violenta. Até que duas das adolescentes agarram na outra e começam a asfixiá-la com uma almofada. A certo momento, a jovem atacada percebe que tudo ultrapassou os limites da brincadeira e a asfixia que a assola não é apenas física mas a da incompreensão. Luta para se soltar perante o mesmo olhar pávido e sorridente da estrela pop no poster, até à última respiração...

O detective da policia, de pé perante a mesa da esquadra onde estão sentadas cabisbaixas e quietas as duas adolescentes, fuma um cigarro nervoso. Andando de um lado para o outro pergunta: Porquê?... Porquê? Porque é que fizeram isto?
Baixo e laconicamente diz uma delas: Queríamos saber se iríamos sentir remorsos...

(Baseado em factos verídicos)