terça-feira, dezembro 26, 2006

Gospel


«Têágo, whati ari iu goingue tó dú tónaiti?», irrompeu no meu quarto o italiano com quem partilhava casa. Niente, rien de rien, nothing special. E imediatamente falou-me de um concerto de Gospel no centro de Coventry (a cidade que mais prima pela fealdade em toda a Inglaterra). Logo despontou em mim a imagem comum das senhoras negras, sopradas, a cantar alegremente em vozes líricas o evangelho do Senhor. Apesar de ateu, graças a Deus, achei o programa interessante, até porque inédito para mim, e lá fomos. À entrada da sala do concerto um cartaz vigiava-nos os passos, anunciando um debate entre criacionistas e evolucionistas – senti um formigueiro, haveria ali uma quebra do espaço-tempo que teria trazido ali um pedaço do séc. XIX?!
Acomodámo-nos no meio da sala e aguardámos expectantes pelo espectáculo. Algo inesperadamente começamos a ouvir os brados ao céu de um padre evangélico. Nem críamos acreditar na situação em que nos tínhamos metido!, no meio de uma missa evangélica, nós que tínhamos o péssimo hábito de não adorar e idolatrar ninguém sem nos ser devidamente apresentado.
O sermão aquecia e o padre interpelava «Do you belieeeevee in tha Lord?», YEAHHH respondia a assistência. «Say Ámen!» e as ovelhas lá retorquiam ao estímulo extasiadas na fé. «Cuuuurveee yourself and behold the power of tha Lord!» e nós espetados no meio daquele anfiteatro, aparvoados, ante aquela gente encurvada em transe a esbracejar Ámen no ar. Era impossível não dar nas vistas!
Felizmente que a missa tinha que acabar e veio o Gospel cantado pelos fieis. Descobri que o gospel pode ser qualquer estilo, soul, r’n’b, reggae, rap, hip-hop, e assim por aí adiante, desde que seja um veículo de transmissão do evangelho do Senhor. O começo era quase invariavelmente o mesmo, a descrição da situação pessoal lastimosa de cada um antes de encontrar a luz do Senhor! «My life was a mess! My life was a mess! I have to confess», debitava um rapper, mas nada que a iluminação do JC não cure! Perante estes testemunhos a minha mente colocou-se à deriva. Mas o que é afinal a iluminação, a fé? Não seria o Céu, ou antes, a sua idealização algo mais pessoal do que aquilo que qualquer religião está pronta a admitir? Alguém que cante aí o Personal Jesus dos Depeche Mode. Ninguém? Imagino-me eu na eterna e celestial parvalheira do céu cristão? Livre dos pecados do corpo, livre de hormonas ou será que é no céu que os homens aprendem a ter orgasmos múltiplos? Um eterno… ininterrupto… orgasmo celestial…
Nisto sinto uma cotovelada do italiano. Planeamos por gesticulação e trejeitos um plano de fuga, um aceno concertado e abalamos em manobras de diversão. Em vão! Com a saída à nossa frente fomos demovidos por duas mãos enormes que se agarraram firmemente aos nossos ombros. Um bigode com um indivíduo atarrachado entrepôs-se à visão da porta. «Don’t go away!». Ó amigo, eu quero é pisgar-me daqui. Mas insistia ele: «You have the chance right here, right now to find Jesus and the light!» Sim sim, mas a luz às vezes não faz mais que ofuscar. «Today can be the day that will change your lives for ever!» Virei-me para o bígode e interpelei: «Então e se eu for o maior filantropo do mundo mas não encontrar a luz e não acreditar no JC ou no Senhor-Todo-Poderoso, irei na mesma para o Inferno?». Logo um dedo indicador gesticulou fervorosamente à minha frente e uma voz estremecida e apregoadora sentenciou, qual eco Metraton dos confins dos céus: «That´s right!». Descolamos das mãos que nos seguravam os ombros e demos vários passos por cima da nossa respiração até à porta, sempre na expectativa que as mesmas mãos obstinadas nos demovessem de novo.
Saímos para fora e sugámos, sôfregos, o gélido ar nocturno. Órfãos, atirados para a noite, longe de um ventre acolhedor, olhámos, um para o outro, como dois gémeos que se reencontram. No vazio da ausência de fé apercebemo-nos que não tínhamos uma nesga de hipótese de salvação. Aliviados abraçamo-nos, rimos, demos dois passos de dança e vagabundeamos pela escuridão com a leveza das crianças perdidas.

domingo, dezembro 17, 2006

Meta-língua

Um dia acordaste e disseste-me: “verdadeiramente não estou a acordar mas a adormecer”. Tentaste contar-me a revelação que tivestes no teu sono, um sentimento profundo que com olhos esbugalhados, expressões espantadas e gestos indecifráveis não conseguiste verbalizar. A partir daí tornou-se uma obsessão para ti verbalizar tudo o que estavas nas franjas da linguagem. Começaste a falar-me da falsa transparência do significado de todas as palavras e emitias, jocosa, sons aparentemente sem nexo como se eles fizessem mais sentido, enquanto davas pulinhos em cima da cama.
Fantasiavas sacudir um dicionário deixando cair as palavras como se fossem flocos de neve em forma de peças de puzzle que se amontoavam no chão. Do montinho construías associações absurdas entre palavras das quais brotavam sentidos insuspeitos, que nomeavam e construíam campos de significado e de inteligibilidade humana à espera de serem descobertos. Uma palavra que classifica, desclassifica tudo o resto, dizias autoritária. Falavas da incúria de não haver uma palavra para as não palavras. Disseste-me que a invenção da palavra Deus para abarcar o descritível e o indescritível era uma inevitabilidade. Reclamavas do fascismo da língua que limita a expressão do mundo inteligível, dos sentidos e dos sentimentos, que deixa escapar tudo o que está para lá das franjas da comunicação e da expressão linguística.
Mostraste a tua revolta, primeiro, aglutinando palavras, expelindo-as justapostas e rerranjadas como se o português fosse uma língua germânica. No meio da rua observavas “Olhovislumbra aquele homúnculo patudonarilongo que patarasteja entre a ruamultidão como se remassemar contrarremetido as vagaondascorrente”. As tuas palavras sacudiam-me, efervesciam-me na base da nuca. Tinha de ponderar o seu significado como se ainda tivesse que aprender a manejar a língua. Quando te olhava fixamente dizias-me “os teus espelhoalma invernam-me”. Intrigava-me a fluidez com que cuspias tais arranjos feitos do barro linguístico comum do qual moldavas expressões inusitadas. Posteriormente, começaste a criar palavras completamente novas com as letras do alfabeto. No final já nem os símbolos do alfabeto te satisfaziam e criaste novos símbolos... Inventaste a tua própria língua, mais próxima do que sentias, com suas próprias regras gramaticais (ou anti-regras, não sei bem) de morfologia, ortografia, fonética e fonologia. A tua meta-língua tornou-se incomunicável para todos.
Inscreves nas paredes do hospital psiquiátrico as tuas frases. Passas-me para a mão páginas e páginas de uma escrita indecifrável. Será um diário, uma viagem interior, um romance, um anti-livro, uma anti-estória...? Perdeste-te no contacto com a humanidade, o que me queres dizer está nas margens do significado…mas então porque é que cada gesto, som e palavra que expulsas me parece tocar, mover e transmitir um nível profundo de sentido?

segunda-feira, dezembro 11, 2006

Picasso

Picasso dizia que “a arte é a mentira que diz a verdade”. Esta noção, que já estava latente na pintura impressionista, tornou-se o elán vital que impulsionou os movimentos modernistas e vanguardistas como o cubismo, o dadaísmo ou surrealismo e que os dotou da sua autoridade cultural. Fica a aqui a minha estória favorita desse senhor:

Estava um distraído turista americano a deambular por um qualquer aeroporto europeu quando esbarrou contra um transeunte. Aquela face que se lhe entrepôs, encrespada de rugas como pinceladas anavalhadas pela seta do tempo, sugeria alguém familiar. Mas foram aqueles olhos pungentes como se esculpissem a realidade à sua volta que fez o americano perceber, perplexo, que tinha à sua frente Pablo Picasso. Sentindo-se afortunado pela colisão não deixou passar a oportunidade de solicitar a Picasso, com o ar chistoso de quem pede a um artista de rua para mostrar os seus dotes, que desenhasse o seu talento num pedaço de papel. Condescendente, o mestre estalou os dedos e em poucos segundos tingiu no papel providenciado a sua mentira. Sôfrego, aquela fera esfaimada com cara de turista atirou-se ao desenho de Picasso, mas este, tirando o rascunho do seu alcance com um gesto, exigiu nada menos que 10.000 dólares.
O americano bem protestou: está louco! Tanto dinheiro por rabiscos que demoraram segundos a fazer.
Meu amigo, retorquiu Picasso, este mero desenho durou cerca de sessenta anos a fazer. Momentos depois surripiava jovial o cheque das mãos meio convencidas do turista americano.

terça-feira, dezembro 05, 2006

É natural!

A estória começa comigo a ler um artigo de uma revista científica no cenário mais inusitado: numa terreola, berço do meu pai, esquecida e ostracizada no meio da Beira Interior. Na derradeira frase da leitura apareceu no meu campo de visão a figura mais improvável com quem eu pudesse tagarelar sobre o artigo: o Ti’ Marcelino, um dos meus tio-avôs octogenários, acompanhado da sua mula. Para o Ti’ Marcelino tudo é espantosamente natural! Sempre que o confrontava com observações para mim assombrosas – “ó tio! já pensou que tudo o que existe surgiu de uma caganita microscópica com uma densidade e um peso infinitos que explodiu e deu origem ao universo onde estamos?” -, o Ti’ Marcelino retorquia pávido e sereno com uma couve na mão: “É natural”. É como se tudo lhe fosse evidente e todas as verdades universais pudessem ser contempladas através da horta e do curral. Se o todo pode ser vislumbrado nas partes então uma hortaliça decerto que engloba os segredos do cosmos!

Voltei várias vezes à carga - “E sabia que o nível microscópico das partículas que compõem os átomos não se rege pelas mesmas noções de espaço e de tempo que nos são tão naturais e intuitivas no dia à dia?” - e sempre a mesma réplica pouco entusiasmada: “É natural!”. Dessa vez, quis confrontá-lo com a tese perturbadora do artigo que tinha acabado de ler. “Ó tio, está aqui um cientista britânico a dizer que há toda a probabilidade de sermos entidades conscientes dentro de uma simulação de computador! (perscruto-lhe as expressões à procura de indícios de compreensão! Nada!) O argumento segue todas as regras da lógica e baseia-se na teoria das probabilidades (nisto, a mula mija!) Segundo o cientista, uma civilização com um nível tecnológico avançado será capaz de conceber simulações, em supercomputadores, de entidades conscientes que farão parte de grandes simulacros (continuo apesar da invasão fétida da urina campestre nas minhas narinas!). Sendo provável existirem, nesse plano de realidade, mais simulações que pessoas então teremos uma grande probabilidade de sermos um simulacro de computador. Tudo isto será ainda mais provável quando nós próprios, raça humana, formos capazes de criar essas simulações. Nessas condições temos de encarar seriamente a possibilidade de a realidade ser uma boneca russa simulacra e Deus poderá não passar de um informático balofo num qualquer canto obscuro doutro plano de existência.” Primeira reacção, silêncio, a seguir uma coçadela na cabeça por baixo da boina e depois, não é que, raisparta o homem, recebo como resposta o inevitável: “é natural”. Para rematar, com o Ti'Marcelino puxando a mula, veio o convite: “Ó rapaz não queres ali ajudar-me a apanhar umas couves? (em vez de estares aí a pasmar inútil com uma revista científica na mão, acrescentei eu mentalmente)”. Ahhhh se tudo fosse tão simples como a vida campestre… e é por isso que é cientificamente razoável concluir que… “o ar do campo é tão puro!”