domingo, dezembro 17, 2006

Meta-língua

Um dia acordaste e disseste-me: “verdadeiramente não estou a acordar mas a adormecer”. Tentaste contar-me a revelação que tivestes no teu sono, um sentimento profundo que com olhos esbugalhados, expressões espantadas e gestos indecifráveis não conseguiste verbalizar. A partir daí tornou-se uma obsessão para ti verbalizar tudo o que estavas nas franjas da linguagem. Começaste a falar-me da falsa transparência do significado de todas as palavras e emitias, jocosa, sons aparentemente sem nexo como se eles fizessem mais sentido, enquanto davas pulinhos em cima da cama.
Fantasiavas sacudir um dicionário deixando cair as palavras como se fossem flocos de neve em forma de peças de puzzle que se amontoavam no chão. Do montinho construías associações absurdas entre palavras das quais brotavam sentidos insuspeitos, que nomeavam e construíam campos de significado e de inteligibilidade humana à espera de serem descobertos. Uma palavra que classifica, desclassifica tudo o resto, dizias autoritária. Falavas da incúria de não haver uma palavra para as não palavras. Disseste-me que a invenção da palavra Deus para abarcar o descritível e o indescritível era uma inevitabilidade. Reclamavas do fascismo da língua que limita a expressão do mundo inteligível, dos sentidos e dos sentimentos, que deixa escapar tudo o que está para lá das franjas da comunicação e da expressão linguística.
Mostraste a tua revolta, primeiro, aglutinando palavras, expelindo-as justapostas e rerranjadas como se o português fosse uma língua germânica. No meio da rua observavas “Olhovislumbra aquele homúnculo patudonarilongo que patarasteja entre a ruamultidão como se remassemar contrarremetido as vagaondascorrente”. As tuas palavras sacudiam-me, efervesciam-me na base da nuca. Tinha de ponderar o seu significado como se ainda tivesse que aprender a manejar a língua. Quando te olhava fixamente dizias-me “os teus espelhoalma invernam-me”. Intrigava-me a fluidez com que cuspias tais arranjos feitos do barro linguístico comum do qual moldavas expressões inusitadas. Posteriormente, começaste a criar palavras completamente novas com as letras do alfabeto. No final já nem os símbolos do alfabeto te satisfaziam e criaste novos símbolos... Inventaste a tua própria língua, mais próxima do que sentias, com suas próprias regras gramaticais (ou anti-regras, não sei bem) de morfologia, ortografia, fonética e fonologia. A tua meta-língua tornou-se incomunicável para todos.
Inscreves nas paredes do hospital psiquiátrico as tuas frases. Passas-me para a mão páginas e páginas de uma escrita indecifrável. Será um diário, uma viagem interior, um romance, um anti-livro, uma anti-estória...? Perdeste-te no contacto com a humanidade, o que me queres dizer está nas margens do significado…mas então porque é que cada gesto, som e palavra que expulsas me parece tocar, mover e transmitir um nível profundo de sentido?

8 Comments:

Blogger K said...

Lindo! Amei! Porque também amo as palavras. E os sentidos. Porque conseguiste criar toda uma atmosfera intensa e profunda em redor das palavras.

É um prazer ler-te.

Fica bem

10:19 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

e deixaste-me sem palavras..quase.. ainda consigo escrecifrar um Muito Bom!!

10:16 da tarde  
Blogger blindness said...

Sr. Faceless, aos restantes junto os meus Parabéns. Foi, de longe, o texto mais interessante que li nos últimos tempos. Da minha parte apenas posso juntar na mesma frase o "Lindo!" e o "Muito Bom!" anteriores. Gostei muito. Tanto que não o sei comentar de outra forma. Diria mesmo que fiquei sem palavras. :)

Abraços ;)

PS - Este merecia ser publicado...

12:18 da manhã  
Blogger faceless said...

embora não tenha ficado totalmente satisfeito com o texto, sinto-me obviamente lisonjeado com os comentários para mais vindos de pessoas de quem vou seguindo os blogs e cuja palavra e perspectiva valorizo muito. Gostaria, quem sabe no futuro, expandir-me sobre este tema das "franjas da linguagem" e sobre as formas como a língua poderá evoluir para construir novos campos de sentido, novas formas de sentir e percepcionar o mundo... mas claro que para isso existem várias linguagens entre elas a música...

1:04 da manhã  
Blogger K said...

A auto-crítica pode ser castradora...(eu sei do que falo)

Estou com o blindness: a primeira coisa que me ocorreu após terminar a leitura é que este texto merece ser publicado para além do espaço virtual. Merece ser saboreado nas letras corridas do cheiro de uma página de papel. Ah pois merece!

Se quiseres continuar a explorar o tema, continua. Em todas as vertentes que achares válidas. Não pares é nunca de escrever.

12:36 da tarde  
Blogger Zorze Zorzinelis said...

Há aqui uma questão engraçada; por algum motivo lembrei-me da história da Novilíngua do Orwell, onde o objectivo era mecanizar e "vegetabilizar" os indivíduos através de uma linguagem ultra-simplificada; isto tinha o intuito de roubar emoções aos indivíduos para que se impusesse o regime totalitarista; ora, curiosamente, o teu texto vai no mesmo sentido; ou seja, no caso de quem ultrapasse a barreira rumo à loucura, parece viver com uma espécie de Novilíngua na língua; onde as palavras não espelham emoções e se tornam imperceptíveis para o resto do mundo!

Meu caro, excelente texto; talvez um dos mais interessantes que li ultimamente; sim, para finalizar, concordo contigo: um ou dois pormenores para ficar digno de publicação - muito bom!!!

9:52 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

sim.. reinventa a língua, constrói novos campos de sentido, força!!! eu compro já!!!

e quando te estrangeirares.. não deixes de escrever em português.. ;)

5:19 da tarde  
Blogger faceless said...

Foste pegar logo num dos meus livros favoritos zorze. A lingua é sem dúvida o nosso melhor instrumento de pensar, mas ela não serve apenas para descrever a realidade ou descrever a "realidade" interior dos nossos sentimentos. Ela também cria realidade, com ela podemos conquistar campos de sentido e comunicação. O objectivo da novilíngua é restringir para dominar, castrar, mas a personagem do meu texto quer explodir para fora, conquistar novos campos de sentido e expressão a um extremo que faz implodir a sua capacidade de comunicação com o mundo... e poderia ainda deambular sobre os significados da incomunicação e da loucura... :P

7:27 da tarde  

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