segunda-feira, outubro 09, 2006

Kafka

Não é a burocracia, ou a sua ineficiência, que é, por si só, kafkaniana. O que Kafka nos ensinou é que a implementação de um sistema burocrático é uma lógica que vai permeando os indivíduos debaixo da sua pele. Se a burocracia é um principio organizador quando desviado do seu propósito humano e tornado fim em si mesmo cai no absurdo. Muitas vezes somos injustos para com os sistemas burocráticos pois só lhes despimos o absurdo quando não funcionam. A falha do veio racionalizante e disciplinador da burocracia é no fundo o espelho das nossas próprias incongruências enquanto seres humanos. Entreabre-se o absurdo e a irracionalidade da nossa própria humanidade encobertos pelos nossos próprios sistemas abstractos. Imagino o espectro do senhor Kafka a divagar observante pelas várias repartições da administração pública, pelos correios, pelas administrações… observando com um esgar todas as situações absurdas. Senti claramente a sua presença uns anos atrás, quando fui buscar uma carta registada aos correios. O funcionário dos correios na sua diligência rotineira dirigiu-me a palavra: “O seu bilhete de identidade, por favor!”. O pedido surpreendeu-me, coisa que não deveria acontecer. Parece que foi uma tolice minha. Afinal, para levantar qualquer carta registada é necessária a identificação, toda a gente sabe disso. Porém, era precisamente o meu novo bilhete de identidade que estava dentro daquela carta, enviado pelo registo civil em substituição por um perdido. Tentei explicar a situação caricata mas em vão: “O que quer que eu faça? O que é certo é que necessito do seu documento de identificação para que lhe possa entregar esta carta!”. “Desculpe lá, mas tudo isto é kafkaniano!” – respondi. Nisto sinto o empregado congelar os seus gestos e parar uma fracção de segundo, concerteza o tempo para pensar: “Só me faltava agora um pseudo-intelectualoide para me chatear a mona!”. Depois da sua breve suspensão no tempo continuou inflexível “Pois, pois… é kafkaniano… (“que é que este chouriço quer dizer com isto?”) mas isto há regras para os serviços funcionarem. Se não tem identificação e se ela está na cartinha, o problema não é meu! Porque não vai ao registo civil?”. “O velho jogo do empura…”, fugiu-me o desabafo. Exigi falar com o gerente. Nisto, com um ar displicente o funcionário levantou-se e simplesmente bufou. Foi chama-lo, tínhamos subido um andar no castelo de Kafka.Satisfeita a minha exigência, o gerente indagou “Mas afinal o que se passa aqui?”. Dada a explicação, parou para cogitar. “Como poderia a (i)lógica burocrática resolver este dilema?”, indaguei eu olhando para a expressão franzida do gerente. Finalmente este decidiu-se a abrir cuidadosamente a carta no seu bordo com uma espátula. Retirou solenemente a minha identidade, examinou-a e lançou-me o sobrolho perscrutador. Poderia ter-me passado a identificação directamente para as mãos. Mas não o fez, seria absolutamente contra as regras. Antes, recolocou zelosamente a minha identificação dentro do envelope e passou-o para as minhas mãos. Não é demais frisar a relevância deste gesto, com ele salvara o castelo de Kafka.

1 Comments:

Blogger passarola said...

é muito bom! situação definitivamente kafkaniana..ou Boris Vien(a) (também gostas?) Hoje em dia no registo civil dão-nos um documento/recibo que serve como substituto do BI até ele chegar..mas a descrição é tão deliciosa que até apeteceu esquecer-me disso...
Conselho pessoal e não geral (só posso falar por mim enquanto leitora): começar pela história e só fazer a contextualização intelectual depois..quando comecei a ler, assustei-me.. Prendeu-me a partir do "Imagino o espectro... " eu começaria por aí... mas pode ser pq hoje é domingo. ;)

11:01 da tarde  

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