terça-feira, dezembro 05, 2006

É natural!

A estória começa comigo a ler um artigo de uma revista científica no cenário mais inusitado: numa terreola, berço do meu pai, esquecida e ostracizada no meio da Beira Interior. Na derradeira frase da leitura apareceu no meu campo de visão a figura mais improvável com quem eu pudesse tagarelar sobre o artigo: o Ti’ Marcelino, um dos meus tio-avôs octogenários, acompanhado da sua mula. Para o Ti’ Marcelino tudo é espantosamente natural! Sempre que o confrontava com observações para mim assombrosas – “ó tio! já pensou que tudo o que existe surgiu de uma caganita microscópica com uma densidade e um peso infinitos que explodiu e deu origem ao universo onde estamos?” -, o Ti’ Marcelino retorquia pávido e sereno com uma couve na mão: “É natural”. É como se tudo lhe fosse evidente e todas as verdades universais pudessem ser contempladas através da horta e do curral. Se o todo pode ser vislumbrado nas partes então uma hortaliça decerto que engloba os segredos do cosmos!

Voltei várias vezes à carga - “E sabia que o nível microscópico das partículas que compõem os átomos não se rege pelas mesmas noções de espaço e de tempo que nos são tão naturais e intuitivas no dia à dia?” - e sempre a mesma réplica pouco entusiasmada: “É natural!”. Dessa vez, quis confrontá-lo com a tese perturbadora do artigo que tinha acabado de ler. “Ó tio, está aqui um cientista britânico a dizer que há toda a probabilidade de sermos entidades conscientes dentro de uma simulação de computador! (perscruto-lhe as expressões à procura de indícios de compreensão! Nada!) O argumento segue todas as regras da lógica e baseia-se na teoria das probabilidades (nisto, a mula mija!) Segundo o cientista, uma civilização com um nível tecnológico avançado será capaz de conceber simulações, em supercomputadores, de entidades conscientes que farão parte de grandes simulacros (continuo apesar da invasão fétida da urina campestre nas minhas narinas!). Sendo provável existirem, nesse plano de realidade, mais simulações que pessoas então teremos uma grande probabilidade de sermos um simulacro de computador. Tudo isto será ainda mais provável quando nós próprios, raça humana, formos capazes de criar essas simulações. Nessas condições temos de encarar seriamente a possibilidade de a realidade ser uma boneca russa simulacra e Deus poderá não passar de um informático balofo num qualquer canto obscuro doutro plano de existência.” Primeira reacção, silêncio, a seguir uma coçadela na cabeça por baixo da boina e depois, não é que, raisparta o homem, recebo como resposta o inevitável: “é natural”. Para rematar, com o Ti'Marcelino puxando a mula, veio o convite: “Ó rapaz não queres ali ajudar-me a apanhar umas couves? (em vez de estares aí a pasmar inútil com uma revista científica na mão, acrescentei eu mentalmente)”. Ahhhh se tudo fosse tão simples como a vida campestre… e é por isso que é cientificamente razoável concluir que… “o ar do campo é tão puro!”

11 Comments:

Blogger passarola said...

ah! agora compreendo.. as falhas no meu sistema não são mais do que vírus informáticos.. alguém avisa o responsável mor que tenho o operador a precisar de uma revisão? e.. já agora, não se fazer um up-grade do meu programa de vida.. já precisava de subir um ou dois níveis na qualidade de vida.. bem.. também posso ir apanhar coves......

gostei muito!!! dá uma bela história sci fic.. e eu ando muito numa sci fic
beijinho..

6:48 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

achei um pouco discriminatório, confesso, e nada natural.

Raquel

8:44 da tarde  
Blogger faceless said...

obrigado Raquel pela tua opinião. De facto, não tenho como me "defender" quanto à ideia de que o meu texto é discriminatório. É, tal como qualquer caricatura. Mas de facto tenho um tio-avô que sempre remata com um: "É natural!" É o expediente de quem tem sobre a ciência uma ideia distante e "encantatória". Não achaste nada natural, o que... "é natural" :P para os sociólogos pouca coisa é natural em particular nos assuntos dos homens. Lembro-me de um acontecimento há poucos anos, que mereceu a atenção dos media, em que as mulheres de uma terra no sul de Portugal puseram as mamocas ao léu porque alguém disse que lhes iriam fazer uma mamografia através de uma satélite no espaço. Uma pessoa informada sabe que a ideia é um absurdo mas para aquelas pessoas, bem... era perfeitamente natural!

1:18 da manhã  
Blogger blindness said...

Ahhh.... a "eterna" batalha do "conhecimento" vs. "ignorância"!

Eu, como sempre faço, prefiro assumir-me "ignorante", meter as minhas mamocas de gajo ao léu e achar tudo natural. Tento convencer-me que desta forma, lá no fundo do túnel, posso ainda vislumbrar a simplicidade e beleza do mundo e da vida, tudo aquilo que o "conhecimento" nos rouba... Nem sempre acredito em mim próprio, mas nunca me esquece de um dia ter pensado e escrito algures: "felicidade é sinónimo de inconsciência".

Sim, quase sempre...

5:48 da tarde  
Blogger faceless said...

talvez a "felicidade seja sinónimo de inconsciência" para muitos... excepto para os curiosos... eu sou curioso... mas há também quem diga que a curiosidade matou o gato

6:52 da tarde  
Blogger passarola said...

eu não vejo nada a coisa como conhecimento versus ignorância.. cada qual fala daquilo que sabe. já estou a ver o Ti Marcelino a tentar explicar as terríves e complicadas ameaças que diariamente assombram a vida da horta ou do currar e o faceless a responder.. "É natural" .....

e o Ti Marcelino a ficar muito chocado....

1:02 da manhã  
Blogger faceless said...

pois é Passarola: É natural

11:51 da manhã  
Blogger blindness said...

Eheheh... Está gerada a polémica... ou então não! :)

Pessoalmente, posso dizer que eu tb não vejo nada a coisa como sendo conhecimento versus ignorância. Olhando para aquilo que escrevi, pode até reparar-se que mantenho sempre esses dois termos entre aspas, e não... não foi por acaso nem foi por ingenuidade.

O que tentei fazer, como afirmei, foi tentar manter uma atitude "ignorante" sobre o tom discriminatório (a expressão não é minha, mas o faceless pareceu assumi-lo através do recurso à analogia com "qualquer caricatura") utilizado na pequena história que aqui comentamos.

Quanto à resposta que seria dada ao Ti Marcelino quando este se viesse queixar ao amigo faceless das vicissitudes das hortas e afins, apenas posso dizer que, se o conheço bem, rapidamente a conversa seria um retomar da «tese perturbadora do artigo que tinha acabado de ler.»

Mas prontux, isto é apenas uma opinião que não pretende alimentar polémicas...

Cumps a tds.

1:57 da tarde  
Blogger K said...

ok, não percebi onde é que está a discriminação (embora tenha percebido as vossas argumentações) mas isto deve ser por ainda estar meio a dormir. Ou não.

Já tinha dito, mas volto a dizer: gosto muito dos teus textos.

Poderia por certo dissertar sobre o assunto em causa (e de como é bom por vezes rendermo-nos à ignorância), contudo o meu único neurónio residente hoje está em modo stand-by.

Fica bem

2:08 da tarde  
Blogger faceless said...

obrigado pelo comentário K. Já agora aproveito para fazer publicidade sobre o teu blog. Interessará de certo a quem aprecia fotografia (ouviu sr. Blindness?), streetart ou formas de subcultura urbana.

4:14 da tarde  
Blogger K said...

Não tens que agradecer um comentário (eu podia continuar a bajulação à tua escrita, porque gosto mesmo, mas acho que fica mal ;p). No entanto eu terei que agradecer a publicidade ao meu humilde pasquim. Muito obrigada. Bem hajas!

5:06 da tarde  

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