sábado, abril 28, 2007

Abril

O meu nome é Álvaro ou será Manuel? São tantas as identidades falsas, as múltiplas identidades que se sobrepõem para fugir e enganar o regime e a polícia política, a polícia moral e dos bons costumes. A fé política era, e é, o que me mantém a sensação de unicidade. Alguém que me disse, há uns anos, que os ventos de Abril trouxeram finalmente a liberdade, que podemos baixar a guarda. Mas por precaução continuo na clandestinidade. Perdi todos os meus contactos, melhor assim. A melhor estratégia é sermos apenas uma célula, unos e impenetráveis. Olho o espelho e tento recordar-me quem sou. Que diz o meu bilhete de identidade? Acho-me estranho com a barba feita. Por vezes, nos momentos de dúvida, tenho a sensação que já nem politicamente sei quem sou. Perscruto a rua, vazia. Fecho as cortinas, pego nos documentos e no chapéu e saio para o hall da pensão barata. Pago a conta e olho nervoso para o indivíduo que lê distraidamente o jornal prostrado num sofá. A luz água-ardente do céu de Lisboa fere-me os olhos. Sobressaltado ouço passos de corrida. Falso alarme, apenas crianças que brincam à bola. O mundo deveria pertencer às crianças. A cidade branca está aparentemente diferente com cheiros e sons que me confundem. Cartazes e inscrições esdrúxulas polvilham as paredes da cidade. Seres estranhos olham-me de frente nos enormes cartazes de propaganda política. Serão a expressão da mesma face? O regime disfarça e altera o mundo para assim governar oculto. Para o combatermos temos de ser, também nós, seres invisíveis. Pego o eléctrico e de seguida envio-me de rompante no metro não vá alguém estar a seguir-me…

domingo, abril 22, 2007

Formol

Acendo um cigarro e recordo-me que pouco falta para a consulta de pneumologia no hospital. Levanto-me e revistas pornográficas caem espalhadas no chão. Despontam alguns corpos nús despudorados e escaqueirados, alguns demasiado perfeitos, irreais. E ficam ali as revistas prostradas no chão entre jornais e livros de fotografia, numa mistura insólita com imagens chocantes de guerra, doenças, miséria de James Natchey, Salgado... Penso que me sinto cada vez mais insensível ao toque. Um amigo meu, artista plático, disse-me um dia que homens e mulheres não precisam realmente uns dos outros, sempre podes masturbar-te pá!
Ao longe a televisão anunciava mais mortos no Iraque e vomitava as imagens da violência dos atentados... Um dos jornais espalhados no chão salta-me à vista com mais uma notícia de alguém que entrou em contramão na autoestrada provocando uma série de choques em cadeia. Como combater as imagens? O poder está morto, li algures, disperso na implosão das fronteiras entre o real e o ilusório... A realidade não é mais verificada, chamada a justificar-se a si própria. Não apreciamos a ‘realidade’ das doenças e da fome nos países do terceiro mundo. Através das notícias na televisão tomamos conhecimento de tal situação, mas não a encaixamos. Bombardeados que somos com imensos códigos, mensagens e imagens, a violência, a fome e a doença tornam-se apenas mais imagens desinfectadas no ecrã, que levam à aceitação acética e passiva.
Os significados são dissolvidos em formol pois a informação dissolve o significado numa espécie de estado nubloso que leva à entropia...
Pego no carro e dirijo-me ao hospital. Entre os seus corredores, sinto lamentos distantes e vagos, uma vontade de gritar brota-me de dentro, shhhh, estamos num hospital, ouço uma censura interior. O ambiente branco-pálido e o cheiro ascético, as imagens, os quadros, os olhos virados para o écran da televisão, a propaganda religiosa, como que me querem dizer que os corpos realmente não existem... Vêm-me à memória a imagem, invocada por outro amigo, estudante de medicina, da cabeça de um nado-morto mergulhada num frasco de formol entre os corredores do hospital-escola.
As radiografias dos meus pulmões ao que parecem não estão famosas. Ouço distraidamente o médico a aconselhar-me, calmante e sem expressão, para reduzir o fumo ou pensar mesmo em deixar de fumar. Penso no quão silenciosamente o fumo invade o corpo e em como a medicina já não lida com os corpos físicos, mas com as imagens e os simulacros dos nossos corpos. O ambiente mediático repete e reproduz as imagens do corpo nos corredores e nas salas do hospital, tornando-se o verdadeiro paciente... A doença não pertence mais ao corpo biológico, habita antes as imagens nos monitores, nas radiografias, nas ecografias ou nos TACs...
Saio perto da porta das urgências quando entra um sinistrado de um acidente de viação. Levem no para a sala de observações, ordena um paramédico, temos de tirar radiografias urgentemente, injectem-lhe 10ml de adrenalina... Fico ali prostrado a olhar fixamente, por favor saia daqui, isto não é um espectáculo. O azul-céu destila uma calma etérea e cristalina. Dirijo-me ao parque de estacionamento, coloco a chave na ignição do carro e penso que é um bom dia para ter um acidente de automóvel...

terça-feira, abril 17, 2007

Máscara

Procuro-me, procuro-me, digo eu na minha conversa interior prostrado na tua cama enquanto te vestes. Hoje apetece-me ser Punk, comentas aos pinotes. Abres o guarda-roupa e entrevejo sem consegui retirar qualquer coerência, um kimono de gheisa, couro, roupas vintage, tintas para pintar o cabelo, colares e brincos, cintos da tropa, de rebites. Tento agarrar-te, puxar-te para a cama mas escapas fugidia...
Contas-me entusiasmada a tua terapia regressiva das vidas anteriores, deambulas pela história universal, foste persa, escrava grega, sacerdotisa pagã, bruxa perseguida pela inquisição, princesa em Versailles, prostituta na Londres vitoriana.
Nas paredes contemplo as fotografias de ti própria em vários disfarces que relembram cenas iconográficas ou estereotipadas do cinema ou da vida, Betty Boop, uma minhota, Marylin Monroe, Alice, rapariga de colégio, uma lavadeira das margens do Tejo. Dizes-me que não são disfarces mas sim encarnações de várias personagens que assumes diante a objectiva, retratos de um ‘eu’ adaptável transfigurado no corpo, fruto de uma colagem de fragmentos. Incessante na tua transformação, sempre à procura de novas experiências, aborreceste com a rotina, focas-te no teu corpo, nas tuas máscaras sem que estas tenham qualquer significado particular. O significado, explicas-me, reside na própria forma como cobres o teu corpo, do jeito como te maquilhas e te enfeitas. Celebras o edifício instável da tua maneira de ser que constróis com restos, dogmas, frases feitas, traumas de infância, recortes de artigos de jornal que povoam os recantos do teu quarto, observações casuais, filmes antigos, pequenas vitórias, pequenos gestos, pessoas detestadas, pessoas amadas. Para ti, a tua narrativa de vida é uma colagem, uma montagem do acidental, do achado e do improvisado, de pequenos objectos que encontras e recolhes, que amontoas no teu santuário. Procuro-me, procuro-me, e a teu lado parece-me uma tarefa tão fútil... Beijo os teus lábios e não sei de quem sejam...

quinta-feira, abril 12, 2007

Televisão Pidesca

Sonhei que um dia a televisão organizava, em directo, interrogatórios de estilo policial a figuras públicas e, em especial, a políticos como um passamento, logo a seguir a qualquer outro reality show. O jogo constituía o seguinte: primeiro lançava-se na comunicação social insinuações baseadas em factos menos claros do passado de uma personagem como, por exemplo, o Primeiro-Ministro. Com estas insinuações atiçavam-se os cães, perdão, o público que liam nas insinuações acusações implícitas e retiravam conclusões que têm apenas como limite a sua própria imaginação. Os apresentadores eram caras conhecidas, mas que ali vestiam o seu papel com frontes graves e portes sérios que a situação de inquisidores exigia. Ficariam bem de sobretudo preto e cabelo à escovinha puxado para trás. Era ao próprio acusado e não aos acusadores que era exigido o onûs da prova, que se desdobrava em explicações, em mostrar papéis e documentos, em contar a sua vida. O programa de televisão era um fenómeno, um verdadeiro sucesso de audiências e famílias inteiras reuniam-se à volta do televisor. No sonho ouvia os vizinhos em volta, gritavam, protestavam, "mas está-se mesmo a ver que o gajo é mentiroso, pá!!", outro vizinho exigia raivoso: "partam-lhe uma perna a ver se o gajo confessa!" Acordei no sofá, na televisão constatei assustado que no écran despontavam dois seres vestidos com sobretudos pretos a sacar informações num interrogatório. A bolinha no canto superior acalmou-me... era apenas um filme. Fui para a cama reconfortado com o pensamento de que tal programa televisivo, com certeza, nunca chegaria a ser feito e que as pessoas, a comunicação social, os políticos, toda uma sociedade tem questões mais urgentes com que se entreter e discutir...

quinta-feira, abril 05, 2007

Silêncio

No café desenhava os teus lábios a fumar fugazmente um cigarro. Em nenhum dia em particular disseste-me que a ti os quatros elementos nada significavam, só o fumo te era importante e mais verdadeiro. A par do fumo, o teu silêncio pairava suspenso entre o sussurrar do mundo em volta, conversas soltas, loiça a tilintar, o folhear dos jornais que perpassam os dedos domingueiros, o murmurar da cidade distante. Perguntei-te, em que pensas? Nada em particular. Na tua casa colocaste na aparelhagem de som um CD de John Cage. Encontraste os meus olhos, quero que ouças isto. A contagem dos primeiros segundos da música avançava no mostrador da aparelhagem… silêncio… Sentámos prostrados no sofá lado a lado. Quando começa a música? Shhhhhh. Coloquei a minha mão entre as tuas pernas. Senti a pele macia das tuas coxas por baixo da saia. Desviaste firmemente a minha mão. O coração batia, os nervos e as veias palpitavam. 4 minutos e 33 segundos e nada, nenhum som se escapou da aparelhagem. Apenas o meu corpo gritou por dentro. O silêncio é uma quimera, uma utopia…