domingo, abril 22, 2007

Formol

Acendo um cigarro e recordo-me que pouco falta para a consulta de pneumologia no hospital. Levanto-me e revistas pornográficas caem espalhadas no chão. Despontam alguns corpos nús despudorados e escaqueirados, alguns demasiado perfeitos, irreais. E ficam ali as revistas prostradas no chão entre jornais e livros de fotografia, numa mistura insólita com imagens chocantes de guerra, doenças, miséria de James Natchey, Salgado... Penso que me sinto cada vez mais insensível ao toque. Um amigo meu, artista plático, disse-me um dia que homens e mulheres não precisam realmente uns dos outros, sempre podes masturbar-te pá!
Ao longe a televisão anunciava mais mortos no Iraque e vomitava as imagens da violência dos atentados... Um dos jornais espalhados no chão salta-me à vista com mais uma notícia de alguém que entrou em contramão na autoestrada provocando uma série de choques em cadeia. Como combater as imagens? O poder está morto, li algures, disperso na implosão das fronteiras entre o real e o ilusório... A realidade não é mais verificada, chamada a justificar-se a si própria. Não apreciamos a ‘realidade’ das doenças e da fome nos países do terceiro mundo. Através das notícias na televisão tomamos conhecimento de tal situação, mas não a encaixamos. Bombardeados que somos com imensos códigos, mensagens e imagens, a violência, a fome e a doença tornam-se apenas mais imagens desinfectadas no ecrã, que levam à aceitação acética e passiva.
Os significados são dissolvidos em formol pois a informação dissolve o significado numa espécie de estado nubloso que leva à entropia...
Pego no carro e dirijo-me ao hospital. Entre os seus corredores, sinto lamentos distantes e vagos, uma vontade de gritar brota-me de dentro, shhhh, estamos num hospital, ouço uma censura interior. O ambiente branco-pálido e o cheiro ascético, as imagens, os quadros, os olhos virados para o écran da televisão, a propaganda religiosa, como que me querem dizer que os corpos realmente não existem... Vêm-me à memória a imagem, invocada por outro amigo, estudante de medicina, da cabeça de um nado-morto mergulhada num frasco de formol entre os corredores do hospital-escola.
As radiografias dos meus pulmões ao que parecem não estão famosas. Ouço distraidamente o médico a aconselhar-me, calmante e sem expressão, para reduzir o fumo ou pensar mesmo em deixar de fumar. Penso no quão silenciosamente o fumo invade o corpo e em como a medicina já não lida com os corpos físicos, mas com as imagens e os simulacros dos nossos corpos. O ambiente mediático repete e reproduz as imagens do corpo nos corredores e nas salas do hospital, tornando-se o verdadeiro paciente... A doença não pertence mais ao corpo biológico, habita antes as imagens nos monitores, nas radiografias, nas ecografias ou nos TACs...
Saio perto da porta das urgências quando entra um sinistrado de um acidente de viação. Levem no para a sala de observações, ordena um paramédico, temos de tirar radiografias urgentemente, injectem-lhe 10ml de adrenalina... Fico ali prostrado a olhar fixamente, por favor saia daqui, isto não é um espectáculo. O azul-céu destila uma calma etérea e cristalina. Dirijo-me ao parque de estacionamento, coloco a chave na ignição do carro e penso que é um bom dia para ter um acidente de automóvel...

6 Comments:

Blogger blindness said...

Este texto incomodou-me especialmente. O mesmo é dizer que gostei, especialmente, dele. Ver as imagens (ou o império das imagens, como alguém se dignou chamar-lhe) como formol é algo que me parece genial. Retratas as imagens como algo que nos anestesia, que nos mantém amorfos, que nos (des)sensibiliza. Mas que ao mesmo tempo nos invade e, de certa forma, nos dá vida. Algo meio morto, meio vivo, que nos condiciona como nada mais parece ter o poder de fazer.

A personagem do teu texto parece procurar fervorosamente algo real, mesmo que destrutivo. Faz-me lembrar esse filme do Cronenberg, de que sei gostares tanto... Acreditas que nunca tinha pensado nele deste ponto de vista? Talvez um dia destes o reveja. Talvez nele encontre o personagem de que aqui falas. Mas espero não vislumbrar o meu próprio reflexo no espelho...

Belo texto amigo! Curiosamente, deixou-me cheio de imagens.

Abraço. ;)

3:27 da tarde  
Blogger NoSurprises said...

Sem duvida a busca do real é o que me sobresai neste texto. Fazes um retrato quase perfeito da ilusão estética da realidade....Parabéns, volto ainsistir que tás no ponto para que publicasses algo.

12:08 da tarde  
Blogger Patrícia Evans said...

Sabes bem pelo que passei, ou pelo menos tens uma ideia...Tenho pena de não ter a inocência suficiente para ver apenas nas tuas palavras...As minhas marcas são maiores em mim...
*****Beijoca boa

PS:estás cada vez melhor!

9:36 da tarde  
Blogger faceless said...

Este comentário foi removido pelo autor.

12:38 da manhã  
Blogger faceless said...

Blindness captaste bem o espírito do texto. Foi uma escrita bastante cerebral no sentido em que se baseia em ideias, muitas deles retiradas do Sr. Baudrillard (Paz à sua alma!) Também é muito inspirado no universo Ballardiano, isto é, olhar para além das aparências daquilo que o mundo moderno nos proporciona. Talvez em vez do filme te aconselhe a ler o livro "Crash" de Ballard. Seja como for o filme inquieta-me e sem dúvida que gosto dele, não é um filme para deixar as pessoas dormentes.

Obrigado a todos pelos elogios, embora, não tenha ficado completamente satisfeito com o texto. Mas enfim isto é um blog, onde as escritas normalmente são fugazes, efémeras como muito daquilo que graça no nosso mundo. Beijos e abraços a quem de direito.

4:36 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

muito bom texto, hei-de cá vir mais vezes.

10:23 da manhã  

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