sexta-feira, março 30, 2007

A propósito de racismo

Em 2000 fui monitor numa associação cultural pela qual acompanhei uma visita ao Alentejo de uma pandilha de miúdos construída maioritariamente por "pretos" do concelho da Amadora de bairros francamente desprivilegiados. O que é curioso é que naquela visita as diferenças não se jogaram tanto entre monitores ("brancos") e monitorizados ("pretos"). Os monitores pertenciam a outra estratosfera, a diferença ali jogava-se entre os próprios miúdos. Logo aí se percebe que a diferença é construída. Um miúdo da Guiné não tem nada a ver com um puto de Angola – em termos de fisionomia, tom de pele, religião, etc. E é, por exemplo, sintomático como, em alguns círculos, os cabo-verdianos são “acusados” de não serem "pretos" de verdade. Na visita, um miúdo intitulava outro de “Cara de balão” ao que o cara de balão retorquia “Cara de macaco!”. Perante isto, o meu choque teve dois tempos. No primeiro tempo, foi a aparente intolerância entre os miúdos. Claro que é bastante comum os miúdos implicaram uns com os outros, porque uns são calados, são caixas de óculos, são isto e aquilo. Mas ali parecia estar em jogo a própria fisionomia e cor da pele. Pergunto se o tom de pele e a fisionomia de cada um seria ali apenas mais um pretexto para implicar com os outros. No entanto, pareceu-me que, afinal, a intolerância existe em esferas insuspeitas, as diferenças demarcam-se e são construídas nos sítios em que menos eu esperava: “mas então os pretos são racistas entre eles?”. O choque mais duradouro foi o do segundo tempo - o do meu próprio preconceito desvendado. Não, não foi justificar um preconceito porque outros também o praticam entre si, algo que muita gente faz com afirmações do estilo “mas se até eles são racistas!...”. Não foi nada assim de tão básico. O meu preconceito desvendado foi pensar nos “outros”, “nos pretos” ou seja lá em que “grupo social” ou etnia for, como gente igual, monolítica, como se juntos formassem uma pedra. Antes daquele episódio, se me tivessem dito que pensava assim desmentiria de pronto. Mas o facto é que pensava, sub-repticiamente, e foi por isso que aquela construção e negociação da diferença entre aqueles miúdos me chocou assim tanto.

6 Comments:

Blogger blindness said...

Mantendo a ideia de que é necessário combater o preconceito (racial ou outro), apenas me parece que ele é, de alguma forma, inevitável. E explico porquê. Combateremos sempre os pré-conceitos, mas com outros "pós-conceitos" que noutra altura se tornarão também preconceitos, quando a unanimidade social assim o reclamar. Quase me arriscaria mesmo a dizer que toda e qualquer cultura se traduz num acumular de preconceitos e estereótipos, embora me arrisque certamente a ser apredejado das piores maneiras possíveis. :) Além do mais, para além da sua necessidade, o preconceito é muitas vezes visto como algo positivo. Talvez tenha outra designação, menos pejurativa decerto. Mas os contornos não serão os mesmos?

Abraços ;)

2:40 da tarde  
Blogger faceless said...

obrigado pelo comentário Blindness. Sem dúvida os pré-conceitos, os estereótipos são muito importantes para as pessoas, ajudam a organizar a realidade social, a por um pouco de ordem no caos mas temos de ser vigilantes sobre eles. Claro que estar sempre e constantemente vigilante é cansativo, mas temos de ter um olhar atento, crítico em relação a nós próprios. E é nas pequenas coisas, nas pequenas reacções que vemos que é tão fácil cair em classificações generalistas e simplistas dos outros. Abraço

3:57 da tarde  
Blogger passarola said...

este post parece-me todo ele muito preconceituoso.... um beijo :)

12:41 da manhã  
Blogger faceless said...

Dear Passarola, o "post" é suposto ser uma auto-denúncia. Fiz algumas alterações no "post" mas o sentido mantém-se intacto. Mas gostaria de saber as tuas razões para dizeres que o post é "todo ele muito preconceituoso". Beijos

1:12 da manhã  
Blogger Patrícia Evans said...

É sempre assim, quando menos esperamos levamos lições, exactamente por achar-mos ou por não pensar-mos sequer que dali, seja lá o que for, pode vir uma lição... Em todo o caso é bom ser surprendido:) Vivendo e aprendendo!!! Quanto à questão do racismo, assunto principal, não me espantou nada, eu penso no ser humano como um bicho, antes de o ver como um ente portador de pensamento. E como qualquer bicho é guiado pelos instintos, que hoje têm o nome de imaginário colectivo, é mais pomposo e também ilusório, parace que de repente a razão é tudo e as coisas mais primárias deixaram de existir, o que não é de TODO verdade. O exemplo que dás é imagem do que digo - defender sim, mas a minha "tribo", a minha "familia"...

Fico muito feliz por ter um amigo capaz de ver no mais simples o mais complexo e por isso mesmo o mais inteiro:)
***Pat

8:57 da tarde  
Blogger Susana M Fonseca said...

Interpreto-o mais como uma reflexão social do que como uma reflexão racista. Na verdade temos esse tipo de pensamentos relativamente a variadíssimos grupos sociais, e tanto mais é visível, quanto mais estamos distanciados do grupo. Ou seja, acabamos por avaliar um conjunto de pessoas por uma série de características que nos saltam à vista e não pelo conhecimento que temos da mesmas, visto ser inexistente.
Neste caso concreto parece-me mais um sentimento de culpa provocado pela desigualdade e pela história a que este grupo específico está sujeito, que necessariamente uma atitude racial negativa. No entanto intriga-me o distanciamento do acontecimento e o longo tempo que demorou esta reflexão, visto ter acontecido em 2000 e já estarmos em 2007. 

1:41 da tarde  

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