terça-feira, maio 08, 2007

Oriente

O meu fascínio pelo oriente, é um fascínio antigo que surge da fantasia de aterrar em terras o mais estranhas e diferentes da realidade que conheço. É talvez o mesmo fascínio que sentia em pequeno pela União Soviética, como se fosse um outro lado do espelho, como se pudesse saltar o muro e me sentisse, de repente, deslocado, fora do familiar, com o frio no estômago de quem desliza como Alice na toca recôndita do coelho branco. Com a mochila às costas aterro em Bangkok e sou imediatamente invadido por um ambiente sobrecarregado de mensagens, códigos, símbolos orientais, cheiros e sons indecifráveis. Encontro-me como alguém que veio do passado ou do futuro, não importa. Fantasio que sou uma mente incontaminada, deslocada no espaço e no tempo, para quem os edifícios, as pessoas, os artigos do comércio de rua, os enormes cartazes de publicidade nada significam. Sinto-me perdido e mudo, apenas com a capacidade de gritar sons sem sentido.
Depois de algumas horas a vagabundear, perseguído pela humidade, o clima tropical e o fumo invisível da cidade, falta-me o ar, sento-me algures num canto da rua que está em modo fast-forward, pouso a mochila e desligo entre o nevoeiro de gente, bicicletas, veículos e comércio de rua. Sou sugado pelo fluxo espácio temporal de um buraco-de-minhoca para uma viagem de automóvel rumo a Barcelona. Relembro febril a silhueta onírica de um enorme touro preto, a pairar na paisagem enegrecida ao largo da estrada, por entre o desvio para o vermelho do sol moribundo de fim de tarde. Perante a geometria do touro apocalíptico pensei na forma como conceptualizamos o lusco-fusco como um fim, como um mundo que se apaga e não como um princípio, o princípio da noite. Noite e viagem adentro, algures perto de Zaragoza, encontro-me flanqueado de luzes vermelhas suspensas na escuridão. Desafiando o bom senso, desliguei o motor e todas as luzes e deixei o carro deslizar. Sem qualquer referente, o negro cerrado não me permitiu identificar a origem das pontos vermelhos, que assim ficaram sem nenhum outro significado senão o de serem eles próprios, arrancados de qualquer contexto, a pairar cristalinos por entre a escuridão monolítica. E nesta imagem inquietante desperto na noite da cidade.Algo desesperado percebo que perdi todo o sentido de lugar mas lentamente coloco-me de novo nas ruas de Bangkok. Mas estarei eu realmente em Bangkok? Bizarra colagem de paisagens mentais e de lugares como se percorresse uma pilha baralhada de postais turísticos sem qualquer indicação da sua origem. E estranhamente a minha inquietação tem um contínuo entre aquelas imagens distantes nos arredores de Zaragoza e as ruas de Bangkok. Procuro eu perder-me num ambiente estranho para procurar, entre os resquícios e fragmentos, uma identidade mais pura, como o processo de lapidação do diamante, reconhecendo assim a geometria mais perfeita da alma? É como se procurasse as gentes e os lugares mais desviantes para ter um maior sentido de mim mesmo. Mas naquela ambiência alienígena, exasperante, o meu desconforto será um sinal de que a minha alma já não tem resgate? A minha exasperação é subita e surpreendentemente acalmada perante o símbolo da coca-cola entre caracteres orientais. Naquela terra estranha e confusa, peço repetidamente para o primeiro comerciante tailandês que encontro, coca-cola, coca-cola, como se fosse a única água que me poderá salvar da sede.

6 Comments:

Blogger Pedro Villa said...

É impressionante como o desconhecido nos atrai e da mesma forma nos pode consciencializar da 'falta' que nos faz o conhecido...

O Oriente, desperta-me igualmente muita curiosidade, mas há símbolos do Ocidente que têm que ser transportados... Uma lata de 'Coke' faz sempre falta... :)

...E quando inventarem uma máquina para tele-portagem, falem comigo... Serei muito mais viajado e conhecedor do Mundo e d'outras culturas...

Parabéns pelo texto, gostei muito pelas afinidades que nele encontrei...

[]'s

9:36 da manhã  
Blogger Patrícia Evans said...

Muito bom mesmo...Cheio de cores e de cheiros:)E de escárnio subtil;)Lá te espero em Barcelona,temos muito para partilhar os dois naquele lugar de "loucos"...Quem sabe não acabamos/começamos por Las Vegas, um dia num futuro que tarda e apressa.****

10:38 da tarde  
Blogger passarola said...

viagens!!!! Quero... quero precisar desesperadamente de uma coca-cola!!! :)

12:14 da manhã  
Blogger blindness said...

Na última parte do teu texto destacas um desconforto e um exaspero de alguém perdido num mundo estranho, onde o seu sistema de referências "não funciona". Mas eis que surge, no meio deste caos, algo que é reconhecível, algo que por força do imperialismo se impôs sobre toda e qualquer referência cultural e identitária. Mas a mim, ao contrário do que seria justo supôr, isto não me tranquiliza. Apenas me sugere que afinal não poderemos (nunca?) ser mais do que simples viajantes do mundo, longe dos cidadãos do mundo que outrora julgámos vir a ser. Matar a sede deveria significar procurar "águas" diferentes em sítios diferentes, e não nos contentarmos com a "água" de sempre, mudando apenas o cenário.

PS - Talvez a interpretação seja muito pessoal mas cada um foge para onde-lhe-dá-na-telha. :D

Abraços.

8:39 da tarde  
Blogger Susana M Fonseca said...

A busca de símbolos, códigos e snigos, recebamo-los e metamorfoseemo-los para os recuperar e perder em nome na sintonia perfeita entre Homem e Meio. Se a crise aguça a criatividade, o desequilíbrio abre as portas para a evolução...

:)

12:18 da manhã  
Blogger faceless said...

Pedro, de facto o desconhecido atrai pelo menos a mim atrai-me imenso, assim como a ideia de que talvez o sítio ideal para mim não seja exactamente onde nasci, mas será onde? que sítio procuro?

Patricia também espero visitar-te em Barça que é uma cidade que gosto muito.

Passarola, também quero precisar desperadamente de uma coke entre o desconhecido, ou antes, ter pelo menos algum contacto com algo familiar entre o a descoberta de lugares novos.

Blindness, acho que a procura do completamente novo, do completamente desconhecido é uma utopia, um sonho, em especial, hoje em dia. É o nosso próprio corpo, ser que se revolta contra isso. O mais exasperante seria estar entre o desconhecido sem possibilidade de "regresso", mesmo que esse "regresso" seja talvez matar a sede com uma coke ou comer um pastel de nata na China.

Alice, frases filosóficas, mas dentro do contexto do texto acho que sim a crise, o desequilíbrio dentro de um contexto novo aguça a criatividade, a aprendizagem

obrigado pelos comentários.
Beijos e abraços a quem de direito

12:28 da manhã  

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