domingo, junho 03, 2007

Matemática

“O Binómio de Newton é tão belo como a Vénus de Milo”
[Fernando Pessoa]

No novo mundo reina apenas uma linguagem universal: a matemática. Não se sabe ao certo o período em que todos passaram a comunicar somente em matemática, o período onde se deixaram de lado as palavras e onde a transmissão do pensamento passou a ser baseada numa linguagem e numa interpretação do mundo completamente codificada. Terá sido esta revolução obtida através de uma educação deliberada, através de uma revolução linguística deliberada ou até mesmo imposta? Ou terá sido uma revolução silenciosa, fruto do aumento das capacidades cognitivas da humanidade, um despertar da linguagem mais fundamental, o que aliás já tinha sido reconhecido por pensadores da era pré-histórica como Galileu ou Descartes? A religião do novo mundo também emana dessa ideia muito antiga de que a matemática é a linguagem de Deus a tradução mais perfeita da divindade, assim como da profecia Nietzcheniana da construção do “super-homem”. As antigas linguagens comuns são entendidas no novo mundo como uma tradução imperfeita do pensamento, são o espelho imperfeito de um modo de pensar pessoal e de certa forma intransmissível, herege portanto. As pessoas eram pequenos microcosmos de significado e visto que não falavam numa linguagem matemática as pessoas escapavam à descrição e explicação abstrata e axiomática do mundo, reféns das nuances de sentido. O que é certo é que as palavras são entendidas como impuras. Muito das desgraças do mundo antigo são atribuídas às antigas formas de comunicação, a política e o poder são consequências inevitáveis da linguagem comum, a imperfeição do homem era a imperfeição da linguagem.
No novo mundo só há espaço para a linguagem baseada em estruturas abstratas definidas axiomaticamente, usando a lógica formal como estrutura comum de comunicação. As estruturas abstractas, belas em si mesmas, fornecem assim uma generalização unificante do mundo. A verdadeira poesia é a verdade matemática. A outra forma estética pura do mundo é a música que tem a sua tradução matemática. Não há espaço para mal entendidos ou duplos sentidos entre os seres humanos, eliminaram-se as margens e as franjas da linguagem comum, falível, imperfeita, volátil. A utopia iluminista racional tomou forma e uma perdida babel linguística foi assim reencontrada. Os livros, os romances, a poesia feita de palavras são símbolos arcaicos, objectos arqueológicos...

5 Comments:

Blogger blindness said...

Não quero preterir a beleza matemática do «binómio de Newton» ou a pureza e perfeição da linguagem matemática. Mas quero apadrinhar as nuances, as duplicidades e imperfeições de sentido das palavras, mesmo que mais ninguém o faça. Talvez sejamos falíveis na nossa forma de pensar, e temos decerto o nosso pensamento condicionado por esta linguagem que nos descodifica o mundo, mas antes assim. Prefiro a imprecisão, a dúvida e o desconforto da falha, à exclusiva frieza pseudo-perfeita da comunicação matemática. Chamem-me falível, imperfeito ou volátil. Chamem-me arcaico ou objecto arqueológico. Apenas vos responderei «Obrigado.», e só eu saberei o real intuito desta palavra.

Abraços.

PS - Não nos esqueçamos porém que também a matemática não é uma ciência infalível, um pouco à semelhança de tudo aquilo que o homem inventou um dia...

6:26 da tarde  
Blogger faceless said...

o texto pode ser visto tanto como uma visão talvez utópica ou talvez distópica. Talvez nesse mundo ajam resistentes como tu que aceitam a imprecisão das palavras e portanto a imperfeição humana, que se colocam à margem, clandestinos e lêem os velhos livros e romances...
Abraço

PS - a matemática é antes demais um instrumento não sei se poderá ser descrita como falível ou infalível. É apenas uma forma de descrever o mundo tal como as palavras... Talvez as coisas possam ser antes vistas do ponto de vista da sua utilidade... até agora acho difícil a matemática descrever sentimentos, mas quiçá no futuro

11:42 da tarde  
Blogger Pedro Villa said...

Quando a matemática conseguir descrever sentimentos seremos todos robôs, talvez... Ou agiremos como tal... Agiremos com base na raiz cúbica de um número qualquer «exacto»... Gostei do texto apesar de tudo. A resposta do blindness foi verdadeiramente elaborada ao seu estilo, não engana essa resposta poética.

Gosto da beleza e das imperfeições da linguagem muitas das vezes, tal como gosto da exactidão da matemática...

[]'s

1:10 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Sou professora de Matemática.
:)
Por assustador que pareça ser.
Vivo no mundo dos números, mas sou apaixonada pelas letras. Enfim, entre dois caminhos possíveis, segui o menos provável.
Um pouco a provar o absurdo desse abismo entre letras e números. Porquê ter de viver de costas voltadas?
Aprendi a amar a Matemática, no dia em que aprendi a encontrá-la nos litema, em África; na cestaria, na Amazónia; na arte (seria Picasso um robot sem sentimentos?); na música; no crescimento das plantas; no corpo humano...

Se a linguagem universal fosse a matemática, que fácil seria a tarefa do professor de matemática.

Se não existissem as imperfeições na linguagem, que felizes seriam os professores de Português!

Cristina

10:17 da manhã  
Blogger Patrícia Evans said...

Por isso mesmo prefiro os silêncios:)

(saudades...muitas...de ti)

11:48 da manhã  

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