A propósito de racismo
Em 2000 fui monitor numa associação cultural pela qual acompanhei uma visita ao Alentejo de uma pandilha de miúdos construída maioritariamente por "pretos" do concelho da Amadora de bairros francamente desprivilegiados. O que é curioso é que naquela visita as diferenças não se jogaram tanto entre monitores ("brancos") e monitorizados ("pretos"). Os monitores pertenciam a outra estratosfera, a diferença ali jogava-se entre os próprios miúdos. Logo aí se percebe que a diferença é construída. Um miúdo da Guiné não tem nada a ver com um puto de Angola – em termos de fisionomia, tom de pele, religião, etc. E é, por exemplo, sintomático como, em alguns círculos, os cabo-verdianos são “acusados” de não serem "pretos" de verdade. Na visita, um miúdo intitulava outro de “Cara de balão” ao que o cara de balão retorquia “Cara de macaco!”. Perante isto, o meu choque teve dois tempos. No primeiro tempo, foi a aparente intolerância entre os miúdos. Claro que é bastante comum os miúdos implicaram uns com os outros, porque uns são calados, são caixas de óculos, são isto e aquilo. Mas ali parecia estar em jogo a própria fisionomia e cor da pele. Pergunto se o tom de pele e a fisionomia de cada um seria ali apenas mais um pretexto para implicar com os outros. No entanto, pareceu-me que, afinal, a intolerância existe em esferas insuspeitas, as diferenças demarcam-se e são construídas nos sítios em que menos eu esperava: “mas então os pretos são racistas entre eles?”. O choque mais duradouro foi o do segundo tempo - o do meu próprio preconceito desvendado. Não, não foi justificar um preconceito porque outros também o praticam entre si, algo que muita gente faz com afirmações do estilo “mas se até eles são racistas!...”. Não foi nada assim de tão básico. O meu preconceito desvendado foi pensar nos “outros”, “nos pretos” ou seja lá em que “grupo social” ou etnia for, como gente igual, monolítica, como se juntos formassem uma pedra. Antes daquele episódio, se me tivessem dito que pensava assim desmentiria de pronto. Mas o facto é que pensava, sub-repticiamente, e foi por isso que aquela construção e negociação da diferença entre aqueles miúdos me chocou assim tanto.