Cachimbo e reflexão
Agasalhado pela brisa matinal o doutor Eduardo meditava entre esfumadas do cachimbo. Desde há muito que fazia a associação de ideias entre cachimbo e reflexão. Havia estabelecido uma ligação, um esquema neuronal que tornava essa associação incontornável. Se sentia necessidade de reflectir tinha de fumar, se fumava a reflexão jorrava-lhe no espírito e assim viajava errante em pensamentos e ideias. E explicar aos seus pacientes que fumava? Como explicar a contradição entre o que a profissão médica aconselha e a sua própria prática de fumador? De nada valia explicar que a doutrina médica enquanto domínio do saber abstracto era uma coisa, que as práticas de um comum médico de família eram outras. Que a sua decisão de fumar fazia parte de uma escolha privada de uma pessoa concreta que por acaso veste de vez em quando o papel social de médico. Que decidira conscientemente fazer uma troca entre o prazer do tabaco e quem sabe uns possíveis ganhos abstractos na esperança de vida. Quantos anos de vida valerão um prazer, uma sensação, uma satisfação imediata dos sentidos? E haveria uma oposição entre os sentidos da vida e um possível sentido da vida? Seja como for “o” sentido da vida parecia-lhe algo de absurdo: cada pessoa é um mundo incomensurável. Quem lhe tirava a pintura agora tirava-lhe tudo. Aliás, em várias consultas de rotina esquecia a medicina e falava de pintura aos seus pacientes. Assustou-lhe essa conexão tão forte. Seria assim tão refém de uma actividade que se tornaria impossível qualquer reconstrução do sentido da sua vida. Deixar de pintar seria morrer? Podia ser pior, pensou, o seu sentido da vida poderia ser uma pessoa, alguém.